ISSN 2179-1287
Número 16 | mai / jun / jul / ago 2015

Por uma mudança nos currículos escolares

Na sua terceira versão, o documento da Base Nacional Comum Curricular pretende ser referência na elaboração de currículos na educação básica do Brasil

Marcelo Robalinho

No Colégio Estadual Professora Lúcia Barros Lisboa, em Londrina, localizado no interior do Paraná, as discussões em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ocorreram em 2015, ano em que foi lançada a sua versão preliminar. Previsto na Constituição, o documento pretende ser referência para a elaboração de novos currículos no Brasil. Para as Ciências Humanas, uma das quatro áreas do conhecimento previstas na Base, uma mesa de debates foi realizada na instituição de ensino paranaense, reunindo professores e alunos. A finalidade foi refletir sobre os currículos e a própria escola, depois de um ciclo de leituras a respeito das propostas da Base apresentadas para as disciplinas de História, Geografia, Filosofia e Sociologia.

“Organizamos esse fórum e os alunos participaram. Algumas das sugestões deles foram encaminhadas. Lembro-me que eles eram muito enfáticos em dizer que preferiam um currículo reduzido e aprofundado, além de temas que lhes pareciam dizer mais respeito, como relações de gênero, drogas e redes sociais”, relata Alexandre Correia Lima, na época professor de Sociologia do Colégio Lúcia Barros Lisboa. No colégio estadual no qual leciona em 2016, o Barão do Rio Branco, em Curitiba, também no Paraná, ele não participou de debates nem foi questionado pelos alunos quanto à BNCC. Contextos distintos de participação que permeiam a Base.

O processo de discussão em torno do documento da BNCC incorporou desde pareceres de pesquisadores até sugestões enviadas pela comunidade escolar ao portal da Base (http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio). Desde a elaboração do texto preliminar, o Ministério da Educação contabilizou 12.226.510 contribuições. Metade delas foi feita por 45 mil escolas que se cadastraram no portal a partir de debates envolvendo professores, alunos, pais e comunidade. A área de Linguagens (que engloba Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Arte e Educação Física) recebeu 5.534.288 contribuições. Foi a maior participação registrada. Em segundo lugar, vieram as Ciências Humanas (2.599.153), seguidas das áreas de Matemática (1.709.065) e Ciências da Natureza (1.657.482), que incluem as disciplinas de Biologia, Física e Química.

BNCC 1

Foto: Arquivo Alexandre Correia Lima

 

Sobre a Base Nacional

Documento estratégico para a educação básica, a BNCC visa à sistematização do que será ensinado nas escolas brasileiras. Em vez de diretrizes genéricas e livros didáticos escolhidos pela própria escola, como é hoje em dia, a Base propõe uma revisão dos currículos. Na prática, essa mudança prevê a garantia de conteúdos específicos, inclusive buscando contemplar as realidades locais de cada região, bem como a mudança do material didático utilizado, incorporando elementos audiovisuais. “A BNCC não é currículo, e sim a referência para a elaboração de currículos nas escolas. Nenhum documento, por si só, é capaz de mudar a educação ou garantir a melhoria da qualidade das aprendizagens dos estudantes. A BNCC precisa ser complementada na escola com outros conhecimentos, trabalhando com a cultura local e o saber dos estudantes”, considera Ítalo Dutra, professor do Instituto Federal de Brasília e diretor de Currículos e Educação Integral da Secretaria de Educação Básica do MEC até junho de 2016.

Segundo ele, cerca de 700 reuniões foram realizadas desde 2015 no Brasil todo, com demandas das universidades e associações científicas, bem como encontros locais em escolas e outras reuniões, de caráter nacional, promovidas pelo MEC. “Pela primeira vez, tivemos uma discussão deste porte no país. Com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que datam do final dos anos 90, apenas pequenos grupos de professores especialistas foram consultados. Com a Base Nacional, abrimos a discussão para toda a sociedade, algo inédito até então no país. Sabemos que o processo é imperfeito. Mas isso pode melhorar. Precisaríamos de mais tempo e maior articulação entre os entes federados para o aperfeiçoamento da proposta. Esperamos que a Base sirva de boa referência em relação ao momento político, garantindo os direitos dos estudantes e o trabalho dos profissionais da educação”, considera Ítalo Dutra.

Foto: Henrique Polidoro

Foto: Henrique Polidoro

As imperfeições a que ele se refere dizem respeito às críticas em relação ao pouco tempo para as discussões, tendo em vista que a primeira versão da BNCC é de setembro de 2015 e a segunda, de maio de 2016. Além disso, algumas mudanças propostas geraram polêmicas. A disciplina de História foi uma das que mais teve protestos dos especialistas, em função da forma como se propõe contar a história do país. Em março de 2016, por exemplo, o Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) publicou um documento criticando a proposta da Base no que diz respeito à abordagem mais restrita da disciplina quanto à trajetória da sociedade brasileira. “Entendemos que o ensino das Histórias indígena e africana, fundamental para a formação do aluno, não pode reduzir-se ao olhar voltado às matrizes da sociedade brasileira – estas devem ser compreendidas em sua especificidade”, defende o documento.

A carta do departamento também apontou o risco da fragmentação dos conteúdos de História e a possibilidade de perda de autonomia do professor e do aluno com o princípio avaliativo implícito na Base, além de se mostrar contrária à presença do Ensino Religioso como componente curricular. “A presença deste componente curricular específico e autônomo pode colocar em xeque o princípio do ensino laico nas escolas públicas brasileiras. No limite, o Ensino Religioso poderá servir à doutrinação e ao proselitismo, gerando o oposto do que se apregoa na BNC. E assim colocaria em risco a liberdade de crença, fundamento das sociedades democráticas”, argumenta o documento da USP.

 

Opiniões favoráveis à Sociologia

Ao contrário da História, outras disciplinas, como a Sociologia, presente no Ensino Médio, não geraram tantas polêmicas, contando com opiniões favoráveis de docentes da rede pública que participaram das discussões. “Achei excelente o texto da proposta, não apenas pelo amadurecimento do que é a Sociologia no Ensino Médio, mas principalmente por propor um encadeamento que parte do mais imediato para um concreto pensado, o que nos facilita muito o desenvolvimento de planos de trabalho docente para os três anos. Certamente, adotarei a Base como referência central para a elaboração dos meus planos”, afirma o professor Alexandre Correia Lima.

Para ele, o currículo, por si só, não pode assumir a responsabilidade de melhorar o ensino da disciplina sem que haja um estudo e uma ação, no mínimo, do mesmo porte do esforço da BNCC a fim de preparar o contexto pedagógico para recebê-lo. No seu entendimento, é necessário considerar o enorme impacto da recontextualização em sala de aula de um texto curricular. “O fato é que as dinâmicas das salas de aula me parecem operar sob lógicas que não coincidem com os projetos estruturação curricular desenvolvidos pelas agências da educação, por mais bem trabalhados e democráticos que sejam. Mesmo assim, creio que a Base Nacional possa ser uma referência de grande vitalidade no auxílio da recuperação da legitimidade e autoridade pedagógica da escola. É muito importante ter uma base nacional para a Sociologia”, diz Alexandre, que também é doutorando do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

No Rio de Janeiro, a professora Bruna Lucila dos Anjos, que participou das discussões da primeira versão da Base a nível estadual em agosto de 2015, acredita que a proposta tem muita relação com o que é ensinado na Sociologia escolar. “Ela faz um apanhado dos principais pressupostos da disciplina. Os temas que aparecem contemplam as três áreas das Ciências Sociais (Antropologia-cultura e identidades / Sociologia-pressupostos teóricos, socialização, trabalho e desigualdades / Política-poder, política e cidadania), bem como as bases epistemológicas da disciplina de desnaturalização e estranhamento, que já aparecem em outros documentos curriculares”, considera.

Na opinião de Bruna, a lista de objetivos de aprendizagem contida no documento pode ser positiva para apresentar os principais temas, conceitos e teorias imprescindíveis no âmbito escolar. “Só acho que precisa ficar mais clara a autonomia que os sistemas de ensino e os próprios professores têm de modificar a proposta de acordo com sua realidade”, pontua a professora, que trabalha no Colégio Estadual Souza Aguiar, situado no Centro da capital o Rio, e é mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

Especificidades locais em meio a questões nacionais

Entre junho e agosto de 2016, foram realizados os seminários estaduais para discutir a segunda versão da Base. São Paulo foi um dos últimos estados a realizar o evento. De acordo com a Comissão Técnica do Seminário da Base lá, as discussões realizadas foram semelhantes em cada área, havendo um processo colaborativo em todos os grupos, com convergências e divergências. Foram analisadas todas as propostas da Base, além dos 1.940 objetivos de aprendizagem, propósitos que se pretendem ser alcançados pelas escolas na hora em que elaborarem os seus projetos pedagógicos e os currículos, da Educação Infantil ao Ensino Médio.

“As discussões tiveram como resultados contribuições de diversas naturezas, entre elas: eixos de formação, inclusão de terminologia que proporcione equidade, sugestões para os objetivos de aprendizagem e integração no documento como um todo”, informa a Comissão Técnica do Seminário, ligada à Secretaria Estadual de Educação. De acordo com o grupo, a BNCC é um documento norteador para as políticas nacionais, curriculares e de formação de professores, não tratando das especificidades de cada região. “Quem deve atender a essas especificidades é o currículo adotado na rede de ensino de cada Estado ou Município. Assim, as especificidades do Estado de São Paulo estão expressas no Currículo Oficial, desde 2008, um currículo básico para as escolas do Ensino Fundamental e Médio e que traz, no seu bojo, temas ligados à realidade local”, indica a Secretaria Estadual de Educação. No ensino das Ciências, a pasta dá como exemplo de eixo temático do Currículo de 2008 a relação ser humano e saúde, que envolve conteúdos ligados à qualidade de vida e à poluição, tão caros ao cotidiano do paulista.

Foto: A2img / Diogo Moreira

Foto: A2img / Diogo Moreira

 

Foto: A2img / Diogo Moreira

Foto: A2img / Diogo Moreira

 

Mais flexibilidade para as escolas

 Para Rossieli Soares da Silva, secretário de Educação Básica do MEC, definir qual conteúdo é importante o professor ensinar e o quê é essencial o estudante aprender em todas as etapas da educação básica, num país com dimensões continentais e diversidade cultural, como é o caso do Brasil, não é uma tarefa simples. “O documento da Base vai trazer flexibilidade para as escolas se organizarem de forma diferente e não de maneira igual, como acontece hoje no Brasil. O Amazonas não é igual a São Paulo, que é diferente de Pernambuco e assim por diante. Por isso, a fase dos seminários estaduais foi essencial para a manutenção das peculiaridades na Base. No encontro do Amazonas, por exemplo, tivemos representantes de municípios como São Gabriel da Cachoeira, que tem acesso a Manaus somente pelos rios ou de avião e cuja viagem de barco pode levar até 15 dias. Essas pessoas foram ouvidas. Este foi o momento para que cada Estado apontasse os caminhos que só os educadores daquela localidade conheciam, ajudando o Brasil na construção da Base”, argumenta.

Foto: Mariana Lima

Foto: Mariana Lima

Segundo Rossieli, a primeira versão da BNCC teve o mérito de colocar a discussão sobre a Base nas ruas. Da primeira para a segunda versão, as áreas de Língua Portuguesa e História foram as que mais modificações obtiveram, levando-se em conta todas as considerações apresentadas. “Na segunda versão da Base, o debate está tendo um caráter qualitativo maior, e não de massa, como foi antes. A intenção é mesmo apurarmos este documento, para que, de fato, ele contemple exatamente o que estamos buscando: pautar qual conteúdo é importante o professor ensinar e o que é essencial o estudante aprender”, afirma. Com a implementação da Base, diz ele, a proposta é que 60% do conteúdo abordado em sala de aula seja de acordo com a Base e o restante seja definido pela própria escola e as redes estaduais e municipais.

Foto: Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino do Amazonas / Divulgação

Foto: Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino do Amazonas / Divulgação

“Existe uma série de ponderações que este documento vai nortear. Por exemplo, a escolha do livro didático. Ela deverá trazer muitas considerações sobre este tema. A Base vai colocar uma luz também sobre a formação de professores no Brasil. Não tem como continuarmos com o mesmo tipo de formação que temos hoje, lançando um documento referência como este. Por isso, a importância de as universidades estarem inseridas neste processo de construção da Base”, indica Rossieli. As propostas estão sendo analisadas pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e deverão seguir ao MEC para serem consolidadas e encaminhadas posteriormente ao Conselho Nacional de Educação (CNE) até o final de 2016 para apreciação.

BNCC 6

 

A Base sob a ótica de dois educadores

 Interessados no aprofundamento do debate a respeito da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Revista Coletiva convidou dois especialistas com vivência na área da educação para opinarem sobre as mudanças propostas pelo documento, atualmente em debate. Elizabeth Macedo, professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Luiz Fernandes Dourado, professor titular e emérito da Universidade Federal de Goiás e ex-membro do Conselho Nacional de Educação entre 2012 e 2016, aceitaram ser entrevistados para a nossa reportagem. Aos dois, fizemos propositalmente quase as mesmas perguntas para saber a posição deles a respeito da Base, com ligeira diferença em função do perfil e dos interesses de pesquisa de cada um. A intenção inicial era compilar as partes mais importantes para o nosso texto. Mas o conteúdo se revelou tão rico e diverso que optamos por separar as ponderações dos dois especialistas em entrevistas em separado, mantendo a íntegra das respostas. O propósito é instigar a discussão sobre o assunto para além da reportagem. Em maior ou menor grau, ambos consideraram, à sua maneira, os avanços obtidos com a segunda versão da BNCC, ao possibilitar maior articulação entre os componentes curriculares. Também apontaram riscos na secundarização do papel do professor e na ênfase em material didático padronizado, devido à concepção ambígua presente na ideia de currículo nacional. Enquanto Elizabeth se mostrou mais cética quanto às atuais necessidades do sistema educacional e à importância de considerar as diferenças regionais na elaboração da Base, Luiz acredita que a BNCC pode contribuir para a construção de dinâmicas curriculares e de gestão pedagógica capazes de assegurar formação com qualidade. Com a palavra, Elizabeth Macedo e Luiz Dourado.

 

Elizabeth Macedo:

“Currículo centralizado não é questão de qualidade”

Foto: Rafael Luz

Coletiva – Você participou das discussões sobre a BNCC? O que acha da proposta?

Elizabeth Macedo – Participei apenas do debate acadêmico que se travou após a elaboração do documento. A proposta original era muito ruim, sem definição dos princípios teóricos que a subsidiavam, e a segunda versão foi um pouco mais cuidada. Não é melhor porque isso é uma empreitada impossível. Nunca se poderá agradar a todos e isso fica claro em todas as experiências no mundo. Há sempre descontentes porque a escolha será sempre política e ideológica. Não é apenas a esquerda que é ideológica, como querem os adeptos da Escola Sem Partido. Tenho defendido que o problema principal não é com esta Base que aí está, mas com a própria ideia de que é necessária uma base curricular nacional comum definida em nível de ministério. O problema com essa ideia é que pressupõe que currículo se produz de cima para baixo e que, ao professor, cabe apenas aplicá-lo. As consequências disso para a educação são muito ruins. Primeiro: desestimula os docentes porque eles passam a não precisar refletir mais sobre suas aulas e seu trabalho. Depois, torna o trabalho docente pouco estimulante, o que acaba por deixar de ser atrativo para os estudantes que estão escolhendo suas profissões (isso sem falar no salário que já não é um estímulo). E terceiro, “desresponsabiliza” o professor sobre o seu trabalho em sala de aula. Embora a propaganda seja que se poderá cobrar do professor, entendo que o efeito é exatamente o oposto, se ele não é responsável pelas decisões, não é responsável pelos resultados. Há, no entanto, duas outras consequências não diretamente vinculadas ao trabalho do docente que dizem respeito direto à função da escola. Estamos aceitando com naturalidade que a escola é lugar de ensino e não de educação, o que é um erro de acordo com praticamente todas as teorias pedagógicas. A escola é, sobretudo, um lugar de educação, onde o aluno se constitui como sujeito também, mas não apenas em relações mediadas pelo conhecimento. A escola é um espaço onde as pessoas se relacionam, criam laços de confiança, produzem respostas para os desafios que a vida nos coloca. É um espaço de educação que exige que o aluno seja visto como um sujeito, e não como um arquivo de conhecimentos, a maioria deles pouco úteis. Basta sentar com uma criança para um desses joguinhos de quizz que vamos perceber que eles sabem responder a muito mais perguntas do que nós porque já esquecemos boa parte dos conhecimentos que aprendemos na escola, mesmo os bons alunos, e ainda assim somos competentes naquilo que fazemos, bem sucedidos no mundo do trabalho. O que trouxemos da escola para nossa vida não foram aqueles conhecimentos ou, pelo menos, não foram apenas eles. Esse é, na minha opinião, o maior desserviço que a base vai prestar à educação. E quero destacar que essa função é ainda mais importante para os grupos sociais menos favorecidos porque, para eles, a escola é o ambiente mais convidativo para estabelecer essas relações interpessoais que nos educam. A outra consequência, ligada a esta, é que essa inter-relação de confiança não pode ser judicializada. Não se pode incitar os pais a processar professores e os alunos a delatar professores, porque você quebra a relação de confiança sem a qual não há educação possível. E não estou advogando a falta de controle do trabalho docente, mas temos formas muito mais adequadas de fazê-lo, via participação efetiva da comunidade na escola. Confiança é a base da educação. Se você quebra isso, não tem educação. Para mim, na verdade, não tem saída, é o fundo do poço.

Coletiva – A senhora acredita que a Base contempla as atuais necessidades do sistema educacional e as diferenças regionais?

Elizabeth Macedo – Não contempla, mas até poderia fazê-lo em termos de conteúdos. Mas, como disse, não acho que este seja o ponto. Há previsão de que 30% sejam de conteúdos regionais. Mas quem vai determiná-los? Se desacreditamos nos níveis locais como aqueles que podem fazer currículo, como eles determinarão os 30%? Ou posto de outra maneira, que força terá esses 30% determinados por níveis que são desacreditados pela própria ideia de Base? Com certeza, como ocorre em vários países, esses 30% não farão parte das testagens nacionais – o outro lado da moeda das BNCC – e não terão valor. A história nos ensina que, sempre que há um currículo mínimo, ele se torna máximo para os grupos menos favorecidos.

Coletiva – Em alguns textos seus, a senhora escreve que as bases não são condição para uma educação de qualidade. Por quê? A normatividade do currículo e a forma instrumental como o conhecimento costuma ser definido na atualidade seria um dos entraves para isso?

Elizabeth Macedo – As avaliações hoje realizadas pelo próprio MEC apontam o que a maioria dos estudos sobre currículo tem apontado há décadas. As melhores escolas públicas são os colégios de aplicação vinculados às Universidades, o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e os institutos federais de educação tecnológica. O que eles têm em comum? Professores bem preparados, que, em geral, trabalham apenas em uma instituição, com salários dignos. Mesmo defasados, ainda lhes permitem formação cultural sem ser na forma de esmola do poder público, com tempo dedicado à preparação das aulas, reunião. Em geral, essas escolas são mais livres em termos de currículo do que as escolas comuns das redes, o que significa que o currículo centralizado não é requisito de qualidade. Algumas delas têm seleção na entrada, mas hoje já muitas estão optando por sorteio. É verdade que até o movimento dos pais em participar desses sorteios já é um diferencial que pode explicar parte da diferença. Mas não a maior parte. Estou certa de que essa diferença vem das condições de trabalho e aprendizagem oferecidas por tais escolas, sem currículo nacional, com liberdade de trabalho para o docente. Essa é a lição que a Finlândia deu ao mundo quando resolveu passar da lanterna nas testagens internacionais às primeiras posições. É uma sociedade diferente da nossa? Sem dúvida. Mas por que copiamos as piores soluções que vêm sendo descartadas inclusive em seus países de origem, como o currículo comum americano? Entre outros, estou convencida, porque somos um grande mercado e eles têm que nos vender a tranqueira que produziram lá e que não vão poder usar com seus alunos. Quanto ao fato de o currículo ser normativo, isso é inevitável, mas não desejável. Entendo que o trabalho político do Ministério deve ser apostar em que essa normatividade não sufoque as possibilidades de aprender e assumir que o norte dessa normatividade é o instrumentalismo, é nadar contra a corrente.

Coletiva – Embora a discussão sobre uma base comum para os currículos não seja recente, por que só agora que se concretizou?  

Elizabeth Macedo – Ela vem se concretizando ao longo dos anos. Enquanto vivemos na ditadura, tínhamos pareceres do Conselho Federal de Educação que amarravam bastante bem os currículos. Saídos desse período vergonhoso da nossa história, nosso primeiro movimento foi garantir que as crianças e os jovens fossem à escola. Essa demanda teve destaque até a universalização da escolarização. O controle centralizado do currículo vem sendo concretizado desde os anos 1990. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o debate apareceu depois nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), Diretrizes Curriculares, BNCC, Pátria Educadora. Em todas elas, a promessa de solução fácil para problemas complexos, o que tem um grande apelo político e para a sociedade. Há alguns eventos mais amplos que transcendem a escola e poderiam ser apontados não como causas da intensificação dos debates, mas como pontos na teia de disputas. A globalização econômica é, sem dúvida, um deles, com a demanda por uma mão de obra internacionalizada e pela validação de diplomas entre países. Foi o caso aqui em relação ao Mercosul. É o caso, na Europa, em função da União Europeia. Outro aspecto que me parece relevante foi a recuperação econômica do Brasil que passou a ser encarado como promessa, a exemplo do discurso dos BRIC (sigla, em economia, que se refere ao Brasil, Rússia, Índia e China, países em desenvolvimento que se destacam mundialmente), e que se apresenta como um enorme mercado para corporações internacionais. Outra questão ainda é o movimento que se vê no mundo todo de que os espaços públicos sejam submetidos a formas de gestão privadas por grandes fundações. Veja o exemplo da Fundação Lemann, no que diz respeito à BNCC. Trata-se de uma fundação familiar privada que tem substituído o estado em muitas dessas discussões. Em reuniões para a discussão da BNCC, a Fundação pagou hospedagem e passagem de secretários de educação para participarem das reuniões que ocorreram em suas dependências. Minha pergunta é: os municípios de São Paulo, o estado mais rico da nação, não têm dinheiro para custear uma passagem de ônibus, se fosse necessário, e um hotel para seus secretários? É preciso fazer tais reuniões numa fundação privada? Não quero aqui ser xiita em relação às instituições privadas, mas isso significou que as pessoas convidadas a falar nesses eventos foram também definidas pela Fundação Lemann e deram o tom do debate. E esse tom estamos vendo por aí: listagens de conteúdos para subsidiarem a avaliação, culpabilização do professor pelo fracasso da educação, redução de gastos com salários, ampliação de ensino a distância, entre outros. É uma forma de entender a educação como uma empresa e uma empresa ruim que tem que dar lucro, mesmo às custas da vida das pessoas. Vemos isso todos os dias em indústrias que adulteram remédios e comidas para ampliar suas margens de lucro. E o Estado, incapaz de controlar esse disparate, tem ficado refém do dinheiro e das formas de gestão desses negócios. Esses são alguns aspectos contextuais que indicam porque o debate tem se acirrado hoje.

 

Luiz Fernandes Dourado:

“Defendo a Base para a concretização dos direitos e objetivos de aprendizagem

Coletiva – O senhor participou das discussões sobre a BNCC? O que acha da proposta?

Luiz Fernandes Dourado – Inicialmente, é preciso situar que a discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular, a despeito de referenciada em dispositivos legais, efetiva-se num contexto marcado por disputas em torno da concepção de educação, instituição educativa, currículo nacional comum. Num segundo momento, é fundamental compreender o que está em disputa. Ou seja, o que se entende por direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento e, neste contexto, como tais concepções sinalizam para o entendimento que se tem do alcance político pedagógico de uma BNCC e no seu bojo para a definição do papel da união e dos sistemas de ensino, das instituições educativas, seus profissionais e estudantes, entre outras variáveis. Na condição de membro da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, até 30 de junho de 2016, participei da Comissão Bicameral do Conselho Nacional de Educação (CNE), que tratava da BNCC. Nesse contexto, analisei as duas propostas submetidas à discussão pelo MEC e me pronunciei, em vários momentos, problematizando limites e sinalizando questões e proposições para o debate. Destaco que a discussão sobre a BNCC é complexa e os marcos legais e de princípios que devem norteá-la são as diretrizes curriculares para a educação básica. Sem negligenciar os embates que se processam sobre currículos, entendo que é fundamental situá-los como expressão da articulação entre os conteúdos de ensino e as formas de seleção, organização, gestão e transmissão, por meio de mediações pedagógicas, tempo, espaço, entre outras. Isto quer dizer que, por essa compreensão, a noção de currículo não se restringe ao conteúdo de ensino e à ordem de sua progressão no decorrer do tempo, mas envolve igualmente as políticas educacionais, os sistemas de ensino, as instituições educativas, seus profissionais e estudantes. Por essa razão, o currículo é visto como dispositivo de diferenciação social, ou seja, é produção e reprodução e, desse modo, a BNCC não pode ser prescritiva, não pode ser a reedição do currículo mínimo como defendido em várias concepções. Ao contrário, ela deve apresentar diretrizes e princípios consolidados nas diretrizes nacionais para a educação básica que se articulam às etapas e modalidades da educação básica com vistas a garantia de unidade na diversidade sem prescindir do papel ativo do educador e do educando nesse processo.

Coletiva – O senhor acredita que a Base contempla as atuais necessidades do sistema educacional? Quais os limites do documento em discussão?

 Luiz Fernandes Dourado – A segunda versão do documento sobre a BNCC, elaborado pelo MEC após consulta pública, avançou em relação à primeira versão, ao incorporar alguns elementos que possibilitam maior articulação entre os componentes curriculares, mas ainda apresenta limites a serem equacionados. Uma questão estrutural refere-se à concepção ambígua de currículo que oscila entre a prescrição nacional e a sinalização de diretrizes e princípios. Essa ambiguidade permite que a proposta possa ser apropriada por várias abordagens, inclusive aquelas que querem padronizar um currículo nacional e atrelá-lo as dinâmicas avaliativas, sobretudo as que se traduzem pela ênfase aos testes de desempenho estandardizados. Uma das consequências mais complicadas dessa concepção é a secundarização do papel do professor e a ênfase em material didático padronizado, como os “apostilamentos”, balizado por dinâmicas avaliativas restritas aos exames estandardizados. Em contraposição a essa compreensão restritiva, defendo que a BNCC se apresente como proposta pedagógica nacional para a concretização dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, constituindo-se, desse modo, em valor e princípio ético pedagógico direcionado à garantia de processos formativos, cuja materialização se efetiva a partir do esforço federativo para a construção de currículos, tendo por eixo a unidade e diversidade, requerendo, portanto, o efetivo regime de colaboração e cooperação entre os entes federados, a participação dos sistemas de educação, das instituições educativas, seus profissionais, estudantes e suas famílias, visando à garantia do direito à educação, cumprindo o artigo 205 da Constituição Federal. Por essa compreensão, a BNCC se constitui em política nacional, mas se contrapõe à padronização, unificação curricular ou reedição de um currículo nacional mínimo. Ao contrário, apresenta-se assentada no reforço as diretrizes nacionais e seus princípios cuja materialização efetiva-se por meio dos sistemas de ensino, suas instituições educativas, profissionais da educação e estudantes.

Coletiva – Em que medida a BNCC impactará nas políticas e gestão da educação básica? Podemos fazer uma correlação entre elas, tendo em vista a qualidade como desafio nacional?

 Luiz Fernandes Dourado – A BNCC poderá afetar de várias formas e intensidades a depender a concepção que a norteia. A Base Nacional Comum Curricular (BNC) pode se apresentar como eixo pedagógico, de um lado, centralizado e padronizador ratificado pela reedição do currículo mínimo e/ou pela definição de uma mera lista de conteúdos, ou se apresentar a partir de uma visão ampla por meio da retomada das diretrizes nacionais que delineiem direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento como parte constitutiva da política nacional, cuja materialização se expressa na relação de cooperação entre os entes federados, seus sistemas de ensino, instituições educativas, seus profissionais e estudantes. Ratificando a segunda posição, entendo que a BNCC poderá contribuir para que os sistemas educacionais, as instituições educativas, seus profissionais e estudantes vivenciem e construam dinâmicas curriculares e de gestão pedagógica que assegurem a formação com qualidade social dos estudantes da educação básica, em suas etapas e modalidades. Nessa direção, a BNCC tem como centralidade a legislação educacional, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica e as demais diretrizes relativas às modalidades, a diversidade, os documentos curriculares dos estados, mais Distrito Federal e municípios, além dos conhecimentos produzidos pelas áreas da educação básica, bem como os projetos pedagógicos das instituições educativas onde os currículos, a partir da ação pedagógica efetiva entre professores e estudantes, se materializa e ganha organicidade.

Coletiva – Por que o senhor afirma que as contribuições dos pesquisadores Guadêncio Frigotto e Paulo Freire são fundamentais para entender a BNCC e os processos da educação?

 Luiz Fernandes Dourado – Paulo Freire tem uma importância muito significativa no campo educacional brasileiro e mundial como teórico de grande envergadura. Este pensador contribuiu enormemente para o pensamento educacional, sua problematização e proposição. Ao rediscutir a educação e a escolarização, Freire possibilita repensar a educação “bancária”, sinalizando outras perspectivas político-pedagógicas que contribuem para contextualizar o papel de diferentes sujeitos do processo educativo, em particular, o papel do professor e do estudante na criação/recriação cotidiana do ato pedagógico, que é essencialmente político. Gaudêncio Frigotto é um intelectual que aborda a relação educação e trabalho com muita propriedade. Seus estudos contribuem, efetivamente, para a compreensão do papel da educação, sua contextualização e formas de apropriação. Gosto muito da concepção de educação de Frigotto, que entende a educação como prática social constitutiva e constituinte das relações sociais mais amplas. Essa concepção permite apreender a complexa seara em que se apresenta a educação e a escolarização, bem como as mediações que lhes configuram dentro de uma dada sociabilidade, suas contradições, paradoxos, enfim, o horizonte pedagógico de produção e reprodução. Essa concepção nos remete a pensar dialeticamente a relação educação, sociedade e modo de produção. São duas concepções que auxiliam a reflexão sobre educação e seus desdobramentos político-pedagógicos, sobretudo em um cenário demarcado por visões restritivas e fundamentalistas que querem cercear o papel dos profissionais da educação, vide Escola Sem Partido, Lei da Mordaça etc.

Coletiva – Quais os desafios para a efetivação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento num cenário de construção da BNCC cuja vertente hegemônica é prescritiva?

 Luiz Fernandes Dourado – Entendo que o grande desafio para todos que defendem uma educação para todos, de qualidade e democrática é de disputar as concepções sobre qualidade e formação e, neste contexto, inserem-se também, a partir de uma visão ampla de educação cuja dinâmica pedagógica respeite e valorize a diversidade, as concepções sobre direito e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Nessa direção, ratifico a importância da concepção de educação como prática social, portanto, constitutiva e constituinte das relações sociais mais amplas. Essa concepção situa a educação e a escolarização como processos de socialização da cultura, historicamente produzida pelo homem, como lócus privilegiado de produção e apropriação do saber, cujas políticas, gestão e processos devem se direcionar para a democratização das instituições educativas. Para que tal processo se efetive, é fundamental valorizar a autonomia das instituições educativas e seus projetos pedagógicos, assim como as dinâmicas de participação e gestão. As dinâmicas curriculares e, no seu bojo, as questões atinentes aos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, traduzir-se-ão a partir da definição da natureza das instituições educativas e de suas finalidades, bem como pela definição das prioridades institucionais, dos processos de participação e decisão, inclusive sobre a dinâmica pedagógica e curricular em sintonia à política nacional e seus desdobramentos nos sistemas de ensino.

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