ISSN 2179-1287

Identificando rupturas e permanências na história dos sistemas de ensino

Ileizi Fiorelli Silva

Diego Greinert de Oliveira

A organização da educação nos estados brasileiros ocorreu em ritmos diferentes e de forma desigual desde os anos 1830 do século XIX. Comparando o Brasil com seus vizinhos, como Argentina ou Uruguai, pode-se afirmar que demoramos a centralizar os procedimentos e os projetos de ensino e educação no país. Argentina e Uruguai criaram sistemas centralizados com gestões descentralizadas desde os séculos XVIII e XIX.

Para entendermos a criação dos sistemas de ensino no Brasil, temos que estudar cada província ou estado e como estes configuraram suas redes no recorte temporal do século XIX em diante.

Ao observarmos o banco de documentos de Instrução e os Anuários de Ensino do Arquivo Público do Estado de São Paulo, encontramos informações valiosas sobre o passado que nos ajuda a refletir melhor sobre o presente. Esse material está atualmente disponibilizado no website do Arquivo do Estado de São Paulo, que pode ser acessado no endereço <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/educacao/index.php>. No período compreendido, especialmente da metade do século XIX ao início do século XX, existem relatos e registros dos esforços na criação de programas de ensino comuns para todas as escolas públicas e privadas, além de propostas de controle e avaliação do desempenho dos alunos por meio de exames realizados pelos inspetores, por análises de estatísticas, entre outros procedimentos.

Cotejar esses dados e reflexões com o que ocorre em termos de normatização da educação pública no Brasil por meio da Constituição Federal de 1988, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, do Plano Nacional de Educação (PNE), de 2015, e da proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2015 e 2016, possibilita uma análise de políticas públicas em termos de comparações com períodos mais distantes. Com isso, nós podemos identificar rupturas e permanências de longo e médio prazo na história do Brasil. Ler e estudar documentos antigos e compará-los com o que se propõe agora, já na segunda década do século XXI, revelam mudanças e permanências na forma de gestão, na compreensão de autonomia e descentralização entre os entes federados, nas propostas de componentes curriculares, nas metodologias de ensino e nas formas de controlar e avaliar os resultados dos sistemas.

No Annuario do Ensino do Estado de São Paulo (1907-1908), organizado, na época, pela chamada Inspetoria Geral do Ensino, temos um histórico traçado que corresponde ao século XIX e ao início do século XX, mais especificamente de 1835 até 1906. Sua criação se dá com o objetivo de reunir dados relativos à educação paulista. O documento abriga metodologias e processos pedagógicos que visam a auxiliar os professores, além de outros trabalhos e assuntos que estejam relacionados à área.

Relativamente aos dados, observamos períodos nos quais houve diversas mudanças na forma de inspecionar e fiscalizar as instituições públicas e privadas de ensino. De 1835 a 1846, a inspeção era realizada diretamente pelo Estado de São Paulo. A justificativa se dava pelo baixo índice de funcionários para a realização de tais tarefas. A partir de 1846, o governo paulista criou uma comissão de cidadãos residentes das respectivas cidades. Era um órgão responsável pela inspeção e fiscalização das instituições escolares. Tal fato traz à tona um elemento interessante: as comissões eram compostas por três cidadãos que inspecionariam as escolas. Esse movimento não foi frutífero, pois constatou-se que as comissões não estavam habilitadas para o trabalho. “A inspeção, qual existe, é trabalhosa, e, de ordinário, os poucos homens ilustrados das nossas povoações estão muito onerados de serviço”, dizia o documento (Figura 1).

Figura 1 – Imperfeições apontadas pelo Annuario do Ensino do de São Paulo de 1907-1908.

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Fonte: Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1908.

Além disso, faltava remuneração por parte do Estado e não havia zelo por parte dos inspetores, este último aspecto considerado uma consequência da falta de incentivos e estímulos. Sem incentivo algum, a Inspetoria mostrava-se ciente do descompasso entre as informações prestadas oficialmente pela fiscalização e a realidade do sistema educacional, como pode ver abaixo no texto disponível na Figura 2.

Figura 2 – Problemas apontados pelo Annuario do Ensino na inspeção realizada em São Paulo.

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Fonte: Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1908.

Em 1851, com um regulamento datado de 8 de novembro, dissolveram-se as comissões e criou-se o cargo de inspetor individual, que, embora tenha trazido mais frutos, não durou muito tempo. Entre idas e vindas com o objetivo de encontrar a melhor forma de inspecionar e fiscalizar as escolas, havia uma relação entre as câmaras municipais e o Estado na criação e dissolução dos cargos, objetivando a melhor forma de contribuir para o ensino nas escolas públicas e privadas.

Em 22 de março de 1874, temos a promulgação da Lei Estadual nº 9, que traz no seu artigo 1º a obrigatoriedade do ensino para todos os meninos com idade de 7 a 14 anos e para todas as meninas de 7 a 11 anos que residam em cidades ou vilas que possuam escolas públicas ou particulares que fossem subsidiadas pelo Governo. Houve ainda outra tentativa de implantação dos conselhos coletivos, que perduraram até 1892. Em 1890, o Decreto nº 27, de 12 de março, determinou uma nova organização à Escola Normal e a conversão das escolas anexas em Escolas-Modelo.  O objetivo dessas escolas era o treinamento dos professores. Em um documento sem data definida do Centro de Referência em Educação Mário Covas, ligado à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, existe a menção de um histórico da Escola Normal de São Paulo (atual Escola Estadual Caetano de Campos). Nele, vemos a descrição da reforma proposta pelo Decreto nº 27. Conforme diz o documento do Centro Mário Covas:

Poucos meses após a proclamação da República, o projeto elaborado por Rangel Pestana foi consubstanciado no decreto nº 27, de 12 de março de 1890, que reformou a Escola Normal, sob a direção do Dr. Antônio Caetano de Campos, e criou as escolas modelo. Essas eram classes primárias anexas à Escola Normal, cujo objetivo era melhorar a formação de professores, permitindo o estágio de normalistas, e desenvolvendo, assim, um padrão de ensino para nortear as escolas oficiais. A Escola Normal teve ampliada sua parte propedêutica, com a inclusão de novas matérias.

Com base nessa mudança, em 1892, houve uma reforma que instituiu a criação de um Conselho Superior, um Diretor Geral que faria a intermediação entre o Conselho Superior e o Governo e, por último, 30 cargos de inspetores de distrito. Como a demanda era alta, o quantitativo de inspetores de distrito foi ampliado para 40. De acordo com o Annuario, a fase entre 1892 e 1897, foi a mais frutífera, sendo inclusive referenciada como período “áureo” das reformas educacionais, como podemos observar nos trechos selecionados nas Figuras 3 e 4.

Figura 3 – Trecho do Annuario do Ensino do Estado de São Paulo de 1907-1908.

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Fonte: Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1908.

Figura 4 – Trecho do Annuario do Ensino do Estado de São Paulo de 1907-1908.

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Fonte: Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1908.

Pôde ser observado que houve um esforço por parte do Estado de São Paulo para que se concretizasse um sistema de ensino unificado, objetivando a contribuir positivamente com a educação. O que perdurou por muito tempo, e perdura até os dias atuais, são os múltiplos desafios que colocam à prova as decisões tomadas pelo governo estadual, inclusive a nível nacional, como a BNCC, em 2015-2016.

Mas não eram só problemas relacionados às formas de inspecionar e fiscalizar as escolas. Havia várias críticas em relação às formas de  ensinar determinado conteúdo. Algumas delas podem ser conferidas num livro de 1895 intitulado “A Eschola Publica: Ensaio de Pedagogia Pratica”. Essa foi uma revista voltada aos professores das escolas públicas e privadas. A intenção era auxiliálos em suas aulas com sugestões didáticas sobre como trabalhar diversos assuntos, desde a fauna e a flora brasileiras, como também a leitura dos alunos, a matemática, a música, a botânica, a química, a física, entre outros diversos assuntos relacionados à escola. O primeiro número da revista data de 1º de julho de 1893. Evidencia-se, no prefácio do primeiro número, republicado no livro de 1895, o propósito da revista. Segundo o texto, assinado por Oscar Thompson, A. R. Alves, Joaquim de Sant’Anna e Benedicto de Maria Tolosa: Não promettemos artigos litterarios, nem scientificos: escreveremos o que pudermos, do modo que soubermos, tendo em vista o alvo que miramos: velar pelas crianças, proporcionando aos professores publicos suggestões relativas ao ensino, suggestões que a Eschola Normal não poude, nem poderá dar-lhes tão cedo.

Esse livro traz consigo uma publicação que totaliza 31 sugestões de conteúdos escolares para servir de apoio aos professores. Traz também o programa preliminar das escolas de São Paulo, dividido em quatro anos, sendo que cada ano compõe duas séries. Dentre as várias sugestões, destacamos um exemplo. Romão Puiggari escreve um trabalho denominado “Novo methodo de leitura”, em que descreve que a metodologia aplicada é classificada em quatro grupos, sendo eles a soletração, os métodos baseados na sílaba, a palavração e os que começam pela frase. Há, segundo Puiggari, uma disputa por domínio do campo do ensino da língua portuguesa entre os autores mais sectários desses quatro grupos. Ele descreve então algumas características de cada um dos discursos dominantes dentro dos grupos e apresenta a proposta característica de cada um. Depois disso, o autor apresenta a sua própria ideia, que é a união e “harmonização” das quatro propostas em uma só. Abaixo, ilustramos a proposta de Puiggari com a sua sugestão de “harmonização” sobre como trabalhar a alfabetização com os alunos (Figuras 5 e 6).

Figura 5 – Sugestão para a alfabetização dos alunos em 1895.

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Fonte: Novo methodo de leitura, 1895.

Figura 6 – Sugestão para a alfabetização dos alunos em 1895Trecho do Novo methodo de leitura

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Fonte: Novo methodo de leitura, 1895.

Como observado, essa é uma das propostas presentes no livro com o compilado de sugestões publicadas por professores do interior e da capital de São Paulo, visando a contribuir com a educação deste Estado. O  esforço em reunir em uma revista e em um livro os trabalhos com sugestões didáticas e metodológicas para os professores mostra como o processo de expansão da escola pública e privada em São Paulo ocorreu e como algumas demandas apareceram. Uma publicação como esta assume uma importância significativa enquanto materiais de trabalho para os professores e professoras das escolas.

Com esse “aperitivo” desejamos estimular a comparação entre políticas públicas de períodos mais distantes para apreensão dos movimentos internos de conteúdos e formas que tomaram a criação dos sistemas de ensino no Brasil, indicando que nunca tivemos movimentos lineares e progressivos. Ao contrário disso, há constantes disputas e tentativas de centralização que encontram resistências por parte daqueles que entendem ser melhor a descentralização, por exemplo, da organização curricular, entendendo-se aqui como propostas de componentes curriculares e formas de progressão dentro do sistema de ensino.

O debate da primeira versão proposta da BNCC, de 2015, e agora da segunda versão, publicada em 2016, situa-se em mais um momento que volta à tona, a difícil decisão de centralizar ou manter descentralizadas as escolhas de o que e como ensinar. Com isso, retoma-se também a questão de como controlar o resultado, a avaliação das escolas e dos egressos. Vários pontos sempre presentes nas reformas educacionais em curso desde o século XIX nas tentativas de constituição de um país capaz de educar suas gerações mais novas nos termos da modernidade.

Para saber mais:

CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO MÁRIO COVAS. Escola Normal de São Paulo. São Paulo – SP, s/d, p. 1-31. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/neh/1825-1896/1846_Escola_Normal.pdf>. Acesso em: 22 jul 2016.

PUIGGARI, Romão. Novo methodo de leitura. In: THOMPSON, Oscar; PEREIRA, A. R. Alves; SANT’ANNA, Joaquim de [et al]. A Eschola Publica: ensaio de Pedagogia Prática. São Paulo – SP: Typographia Paulista, 1895.

SÃO PAULO – INSPETORIA GERAL DO ENSINO. Annuario do ensino do Estado de São Paulo. São Paulo – SP: Augusto Siqueira & C., 1908.

THOMPSON, Oscar; PEREIRA, A. R. Alves; SANT’ANNA, Joaquim de [et al]. A Eschola Publica: ensaio de Pedagogia Prática. São Paulo – SP: Typographia Paulista, 1895.

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foto_ileizi_fiorelliIleizi Fiorelli Silva é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL). É coordenadora da Comissão de Ensino da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e do Observatório da Educação (Obeduc-UEL).

 

 

 

foto_diego_greinertDiego Greinert de Oliveira é graduado em Ciências Sociais (2012), especialista em Ensino de Sociologia (2014) e mestre em Ciências Sociais na linha de Ensino de Sociologia (2016) pela Universidade Estadual de Londrina. É atualmente professor de Educação Básica, ministrando aulas na disciplina de Sociologia desde 2013 na rede pública e privada do Estado do Paraná.

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