Por Alexandre Zarias e Illeizi Luciana Fiorelli Silva Coletiva – Você pode descrever um pouco da sua trajetória acadêmica e profissional e dizer como ela está ligada ao ensino de Sociologia? Heloisa Martins – Na escola secundária, fiz a chamada Escola Normal que formava professores para o curso primário (hoje Fundamental I), na qual havia as disciplinas de Sociologia Geral e Sociologia da Educação. Por influência do professor dessas disciplinas, Geraldo Brandão, fiz o vestibular na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP para o curso de Ciências Sociais, com o objetivo de ensinar Sociologia na Escola Normal. Logo após a conclusão da graduação, entretanto, fui trabalhar no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), como assistente técnico e depois, com a saída de José Albertino Rodrigues, assumi o cargo de Diretor técnico. Meu interesse pelo tema trabalho e movimento sindical foi despertado na graduação, não só pelo que podia observar e acompanhar no contexto político dos anos de 1960, mas principalmente pela iniciação científica em que realizei parte da pesquisa de campo para o livro de Azis Simão, “Sindicato e Estado”, fruto de sua tese de livre docência defendida em 1964. Foi Azis Simão o grande incentivador de minha carreira profissional e acadêmica ao indicar-me para o trabalho no Dieese e pelo convite para trabalhar na Cadeira de Sociologia II, como professora da disciplina de Métodos e Técnicas de Pesquisa. Ele e José Albertino Rodrigues foram fundamentais na minha formação como socióloga e pesquisadora. Desviei-me, portanto, do meu objetivo inicial de docência no ensino médio, para exercê-la na universidade. A minha entrada na discussão da sociologia no ensino médio começou no início de 2000, depois de ter participado de várias reuniões para discutir as diretrizes curriculares do curso de Ciências Sociais elaboradas por uma comissão do Ministério da Educação (MEC) da qual fiz parte em 1998. O trabalho dessa comissão teve como objeto apenas o curso de bacharelado, pois a licenciatura fora atribuição de outra comissão. Nas reuniões de que participei invariavelmente a questão da licenciatura era colocada e a formação de professores para o ensino médio foi aos poucos se ligando ao movimento para a volta do ensino da Sociologia nesse nível da escola básica. Em 2005, iniciei a minha participação na diretoria da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), primeiro como diretora por São Paulo e depois, em 2007, como vice-presidente, definindo como minha principal atribuição as questões relacionadas com o ensino da disciplina no nível médio. A SBS assumiu essa luta e, em São Paulo, conseguimos junto à Secretaria de Educação que a Sociologia voltasse ao currículo. Fomos convidados pela Secretaria para redigir a proposta curricular da disciplina e eu coordenei uma comissão formada por professores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que realizou essa tarefa. Com a aprovação da proposta pela Secretaria, fui convidada, como membro da SBS, para elaborar o material didático, os chamados Cadernos que eram distribuídos para professores e alunos de todas as escolas públicas do estado. Novamente organizei uma comissão, convidando duas ex-alunas, Melissa de Mattos Pimenta e Stella Schrijnemaekers. Foi uma experiência muito importante para mim, pois me permitiu entender com mais profundidade as questões relacionadas com o ensino de Sociologia. Heloisa Martins – A maneira como entendo o ensino de Sociologia no nível médio tem como pressuposto o reconhecimento da importância da Sociologia na formação do jovem estudante nessa etapa da escola básica. Entendo que a “promessa” da Sociologia, no sentido dado por Wright Mills, permite aos indivíduos compreender a sociedade em que vivem, situar-se nela e participar ativamente como cidadãos. No ensino médio, a tarefa do professor e da professora de Sociologia, na efetivação dessa promessa, é de possibilitar ao aluno a aquisição de umasensibilidade, de um olhar sociológico que o ajude a entender e explicar cientificamente a vida em sociedade, seus problemas e inquietudes. Esse processo de aprendizagem, no meu entender, deve ter como ponto de partida uma atitude de estranhamento diante dos acontecimentos sociais, contribuindo para que o aluno não os aceite como naturais e definitivos e consiga superar as explicações de senso comum. Não se trata, evidentemente, de formar sociólogos ou cientistas sociais no ensino médio, nem de orientá-los para cursos universitários, mas sim de contribuir para que o jovem possa inserir-se nos diferentes contextos sociais consciente de suas possibilidades históricas. Coletiva – Depois da Lei nº 11.684, de junho de 2008, que incluiu a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio, o que está sendo produzido sobre o assunto? Quais são os principais temas de pesquisa na atualidade? Heloisa Martins – Não tenho informações detalhadas a respeito de tudo que está sendo produzido sobre a Sociologia no ensino médio. Temos um atraso significativo em termos da pesquisa nesse campo, mas o fato de a Sociologia ter se tornado presença obrigatória na escola básica trouxe a necessidade de ampliação desse conhecimento e várias questões têm sido objeto de pesquisa. Lembro algumas delas: livro didático, propostas curriculares, formação de professores, materiais e métodos de ensino, o lugar da pesquisa no ensino de sociologia, o professor de sociologia, o espaço escolar, as políticas para a escola pública. Há muito ainda para ser feito e as próprias condições de implantação da Sociologia na escola de nível médio exigem pesquisa e reflexão, assim como a constante ameaça de sua exclusão com as modificações propostas para o esse nível de ensino. Coletiva – Nesse cenário, focando a realidade do sistema de ensino brasileiro, considerando a ausência prolongada na disciplina no currículo escolar, a falta de professores licenciados na área e o tempo exíguo destinado à sociologia na grade curricular, o que mudou? Heloisa Martins – A obrigatoriedade do ensino de Sociologia na escola de nível médio trouxe consigo um conjunto de questões que exigem a nossa atenção e posicionamento. A principal delas, a meu ver, é a da formação de professores. Sabemos que a maioria daqueles que ensinam sociologia não tem formação em Ciências Sociais, muitos nem mesmo são da área de humanas. Por outro lado, sabemos que grande número de docentes fizeram seus cursos em instituições privadas de ensino, nem sempre preocupadas com a qualidade da formação de seus alunos. Há, portanto, uma deficiência de formação que necessita ser corrigida com urgência. O sistema de ensino brasileiro, entretanto, não se mostra muito atraente ao aluno dos cursos nas universidades públicas. Baixos salários, péssimas condições de trabalho, as equivocadas políticas públicas para a educação, a falta de concursos públicos de efetivação, a violência dentro e fora da escola que amedronta a todos e a perda de status da profissão de professor da escola básica são fatores que afastam e dificultam a atração pelo magistério. É preciso uma forte vocação para enfrentar tudo isso, em especial no que se refere à disciplina de Sociologia, com suas poucas aulas semanais e a necessidade, portanto, de exercício em mais de uma escola. A situação em nossas universidades públicas, contudo, parece estar mudando. Já há sinais alentadores de maior preocupação com a licenciatura e com o ensino de Sociologia. Coletiva – O que é possível fazer para diminuir a distância entre as práticas de ensino e aprendizado de Sociologia no nível médio, as licenciaturas e a pós-graduação? Heloisa Martins – Quando me refiro aos sinais de mudança com relação à licenciatura, penso exatamente na diminuição dessa distância entre bacharelado, pós-graduação e licenciatura. Posso falar pela USP e seu incentivo à criação junto aos cursos de bacharelado de Laboratórios de Ensino de Sociologia com a contratação de um professor responsável e verba para o seu funcionamento. Em vários estados brasileiros, cresce o número desses Laboratórios e dos grupos do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), que fomentam a discussão em torno de materiais e métodos de ensino, a aproximação com os professores do ensino médio, a troca de experiências. Na pós-graduação em Sociologia, contudo, o crescimento é mais lento. Há instituições, como na Universidade Estadual de Londrina, em que se verifica o crescimento de dissertações e teses sobre o ensino de sociologia, mas em outras esse tipo de pesquisa ainda está circunscrito às Faculdades de Educação. Coletiva – Existe um currículo ideal para o ensino de sociologia? Temos materiais didáticos suficientes e de qualidade para o ensino médio? Nessa discussão, o que dizer a respeito da diversidade social e cultural brasileira? Heloisa Martins – Não há um currículo ideal, nem sou favorável a um currículo único para todo o Brasil. Exatamente por considerar a diversidade cultural e social brasileira penso que a formatação de um currículo deveria reconhecer as diferenças, os problemas e questões regionais e se expressar na elaboração de materiais didáticos adequados. Os livros didáticos existentes não têm a qualidade necessária e na maioria dos casos consistem em uma reprodução simplificada dos cursos de Ciências Sociais. Aos poucos começa a se constituir um acervo significativo de materiais didáticos a partir das experiências docentes, tais como filmes, literatura, músicas etc, como resultado dos encontros nacionais e regionais de ensino de Sociologia onde circulam informações e debates sobre esses materiais. Seria importante, contudo, fazer uma discussão nacional especialmente sobre currículo no qual se pudessem contrapor as diferentes orientações com a finalidade de explicitar as diferenças ideológicas e teóricas existentes. Coletiva – Fazendo uma ligação entre a sua experiência em pesquisas na área de estudos do trabalho e na área de ensino de sociologia, o que se pode dizer a respeito do mercado e das condições de trabalho para os professores do ensino médio? Heloisa Martins – Durante o processo de luta pela volta da Sociologia ao ensino médio eu me posicionei contra o argumento que via apenas sua relevância em termos da ampliação do mercado de trabalho para o licenciado em Ciências Sociais. Para muitos de nós, tratava-se de reconhecer a importância da Sociologia para a formação do jovem da escola pública. Preciso reconhecer, contudo, que nenhuma profissão pode ser defendida se não há mercado de trabalho para ela. A situação do mercado de trabalho no Brasil, no último ano, parece ter alcançado certa estabilidade, com a diminuição da taxa de desemprego e crescimento da oferta de emprego, mas isso não se aplica a todos os setores e ramos da economia. Com relação aos professores de sociologia do ensino médio, sabe-se que existe uma demanda maior do que a oferta, assim como existe falta de professores de outras disciplinas, como física, biologia, química. É difícil atrair os egressos das universidades, especialmente das instituições públicas, para a docência no ensino fundamental e médio. Poucos são aqueles que, motivados pela sua vocação, ousam enfrentar as difíceis condições de trabalho, os baixos salários e a falta de reconhecimento. Tenho como referência, evidentemente, a escola pública, suas deficiências e seus problemas. Por mais que a preocupação com a inclusão e a permanência da Sociologia no ensino médio tenha orientado a nossa ação durante todos esses anos, não é possível fechar-se nessa discussão sem considerar a luta maior que exige a nossa participação: a luta pela educação e a defesa da escola pública. Coletiva – Como você vê a utilização de novas tecnologias para o ensino de Sociologia? O uso da internet, o ensino a distância e as novas linguagens que acompanham os avanços tecnológicos, por exemplo? Heloisa Martins – Não é mais possível ignorar a importância das novas tecnologias para a educação. Os jovens estudantes são fortemente influenciados por essas novas linguagens e o professor não pode ignorá-las. A internet pode ser um instrumento importante para o professor na localização de materiais para suas aulas e para a pesquisa realizada pelos alunos na escola, com orientação docente. Como toda informação da mídia, seja ela impressa, televisionada, ou eletrônica, trata-se de material que não pode ser utilizado sem uma postura crítica que ajude o aluno a posicionar-se diante do que é veiculado por esses meios de comunicação. Quanto ao ensino a distância, tive uma experiência que me ajudou a relativizar algumas resistências. Participei da elaboração junto a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo de um curso de ensino a distância ministrado para professores aprovados em concurso de ingresso para ministrar a disciplina de Sociologia. O curso com a duração de quatro meses tinha como objetivo contribuir para a formação docente e ampliar a discussão dos temas e questões tratadas nos Cadernos de Sociologia distribuídos pela Secretaria. Aprendi a utilizar essa nova linguagem e a avaliar de maneira positiva suas possibilidades nos cursos de especialização em uma determinada disciplina, desde que amparados por plataforma de alta qualidade, infraestrutura adequada e a existência de contatos presenciais entre os alunos e com os tutores. O crescimento espantoso do ensino a distância nos últimos anos, especialmente de cursos de licenciatura de curta duração com nítido interesse mercantil, todavia, me levam a assumir com cautela a defesa desse novo método de ensino. Sou favorável ainda aos cursos presenciais de bacharelado e de licenciatura. Coletiva – De que maneira o ensino de Sociologia pode fazer diferença no nível médio? Heloisa Martins – Além do que já disse, penso que a Sociologia pode ajudar o aluno também no fortalecimento da capacidade de ler, compreender e refletir a respeito de um texto e expor por escrito a sua compreensão. Não só ela, mas também não só a disciplina de Português pode contribuir para isso. Entendo principalmente que a Sociologia tem um papel ressocializador fundamental, na medida em que pode dar ao aluno elementos para situar-se de maneira consciente e informada na sociedade em que vive. Na medida em que o professor de Sociologia assumir o seu lugar na escola apresentando um programa atraente, ministrado com competência ele conseguirá superar as resistências de alunos e professores e fará a diferença.
A Sociologia pode ajudar os jovens a compreenderem a sociedade em que vivem, participando dela como cidadãos ativos. No Ensino Médio, isso pode ser alcançado desde que os professores possibilitem aos seus alunos a aquisição de uma sensibilidade, um olhar sociológico, que os ajudem a entender e explicar cientificamente a vida em sociedade. Partindo desse argumento, Heloisa Martins fala do atual cenário de pesquisa e ensino sobre o tema deste número da Coletiva. Professora doutora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), nossa entrevistada tem colaborado com estudos sobre a questão da Sociologia no Ensino Médio, produzindo material didático para professores e alunos.
Coletiva – Florestan Fernandes apresentou “O ensino de sociologia na escola secundária brasileira”, durante o I Congresso Brasileiro de Sociologia, em 1954. Ele encerra o texto com uma série de questões que sintetizam um conjunto de problemáticas a respeito do assunto naquele período. Dessas questões, destacamos aquela que diz respeito ao seguinte tema: a presença da sociologia no ensino secundário, nosso atual nível médio, justifica-se por conta das exigências dos cursos universitários que pressupõem conhecimentos prévios da matéria ou por que é preciso criar condições de formação e de preparação dos alunos para a vida em sociedade? Hoje, como você responderia essas questões?