ISSN 2179-1287
Número 16 | mai / jun / jul / ago 2015

Nilson José Machado

Necessidade de sintonia entre currículo comum e projeto educacional para país

Por Ileizi Fiorelli e Marcelo Robalinho

captura-de-tela-2016-12-10-as-08-17-20Nilson José Machado, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), é o nosso entrevistado desta edição. Coordenador da elaboração do currículo de Matemática do Estado de São Paulo (2008-2010) e um dos integrantes da equipe que formulou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) entre 1998 e 2002, Nilson conversou conosco sobre a relação entre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as avaliações realizadas em larga escala no Brasil. Para ele, a falta de um projeto educacional, de fato, para o país, é um dos obstáculos não só para as avaliações como também para a própria Base Curricular. Na entrevista, Machado criticou a forma de construção da BNCC. Também analisou a falta de diálogo entre o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a descaracterização deste último em relação à proposta original, tornando-se um processo seletivo para o Ensino Superior. “Precisamos de uma BNCC e de uma matriz de descritores que apresentem continuidade entre as exigências do Ensino Fundamental e as do Ensino Médio”, diz Machado, que é natural de Olinda (PE) e vive em São Paulo desde os anos 60. É autor dos livros “O conhecimento como um valor: ensaios sobre economia ética e educação” (Livraria da Física), “Ética e educação” (Ateliê Editorial) e “Educação: Competência e qualidade” (Escrituras).

Coletiva – Qual o impacto da atual proposta da Base Nacional Comum Curricular para as avaliações realizadas em larga escala no Brasil?

Nilson José Machado – Certamente a produção adequada de uma Base Nacional Comum Curricular deve impactar as avaliações, em larga escala, realizadas no Brasil. Essa é sua função. Qualquer processo de avaliação, no entanto, pressupõe um planejamento, e todo planejamento é a etapa operacional da realização de um projeto. No Brasil, como já dissemos, não temos um projeto educacional para o país. A Constituição Federal prevê a existência de um Plano Nacional de Educação (PNE), atualizado a cada dez anos, e frequentemente temos dificuldade de redigir tal Plano, porque não temos um projeto a inspirá-lo. E o chamado PNE resulta apenas em uma lista de metas porcentuais, de indicadores estatísticos fixados de modo relativamente arbitrário, “para inglês ver”. Basta exemplificar com um problema educacional concreto, que é a anomalia do analfabetismo: aquilo que, numa Constituição, deveria figurar, no máximo, como uma disposição transitória, que é o fim do analfabetismo, permanece, no texto constitucional, como um dos objetivos a serem perenemente perseguidos pelo Plano Nacional de Educação. Seria cômico, se não fosse trágico.

Coletiva – Serão necessárias mudanças no atual modelo de avaliação? Em caso afirmativo, quais seriam e por quê?

Nilson José Machado – O modelo atual de avaliação exagera na importância da técnica na elaboração e, sobretudo, na correção das provas, deixando um pouco de lado o significado da avaliação como juízo de valor. Na elaboração do Enem, por exemplo, as bancas foram substituídas por um banco – banco de questões. A pressuposição é a da indiscutível qualidade de tal banco, que também teria as dimensões adequadas para as exigências da estatística, o que frequentemente não ocorre. Na correção, o uso da famigerada TRI (Teoria da Resposta ao Item) significa gastos astronômicos e esbarra em obstáculos simplórios, como a insuficiência e a qualidade dos bancos de questões, ou teóricos como a pressuposição de que cada questão da prova (item) avalia apenas um traço latente, na busca da caracterização das competências dos avaliados. A consciência sobre a limitação dos bancos e da Teoria existe, mas fingimos que não, não falamos sobre elas. E a vida segue. Para onde, José, para onde?

Coletiva – Como você analisa as matrizes de conhecimento do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)? Elas são adequadas ao sistema nacional de ensino ou aos sistemas de ensino do Brasil?
Nilson José Machado – As matrizes para a realização do Saeb e o Enem não dialogam. Foram construídas por equipes distintas em momentos distintos, respondendo a diferentes contextos. Diversas tentativas de padronização já foram iniciadas, reunindo-se equipes no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa) com essa finalidade. Participamos de duas delas, em 2011 e 2014, sem continuidade e/ou conclusão dos trabalhos, por razões que nunca ficaram claras. O fato é que as matrizes não conversam entre si. O mais grave, no entanto, é que tais matrizes deveriam ter como pressuposto a existência de um Currículo Nacional, o que não existe. O movimento para a construção de uma Base Curricular Nacional deveria ser muito bem recebido, portanto, mas ele começou de modo capenga e continua capengando. Minha impressão é que não vai a lugar algum. Derrapa em questões cruciais como a da distinção absurda entre disciplinas nacionais e disciplinas locais, o que conduziria a uma fragmentação ainda maior dos conteúdos a serem estudados. Outro ponto decisivo é que a proposta de uma Base Curricular Nacional em curso é excessivamente pormenorizada, explicitando questões que deveriam ser deixadas para o discernimento local e não delimitando adequadamente o que seria um elenco de ideias fundamentais de cada disciplina a ser estudada. Em termos de ideias fundamentais, o currículo deve ser único, nacional; a forma de materialização de tais ideias fundamentais em cada contexto precisa ter, naturalmente, as cores de cada estado, de cada região. Um currículo de matemática, por exemplo, deveria explorar um conjunto de ideias fundamentais que seriam as mesmas em todos os estados: equivalência, ordem, proporcionalidade, interdependência, variação, invariância, aleatoriedade, demonstração, e talvez algumas outras (poucas) mais. A forma de apresentação de tais ideias é que deveria levar em consideração a diversidade de contextos. Este ponto, totalmente desconsiderado na formulação da BNCC, provocou estragos expressivos, sobretudo no que se refere aos conteúdos da disciplina História. Mas isso é outra história.

Coletiva – Para você que participou da elaboração das propostas do Enem, quais propósitos e concepções estavam em disputa nesse processo e quais foram ganhando força do desenho e formato do Exame?
Nilson José Machado – O processo de criação do Enem teve como foco a fragmentação disciplinar existente nos currículos, com a perda do significado do que se estuda. O Enem representou um esforço de explicitação das competências pessoais esperadas ao final do Ensino Médio; as disciplinas estudadas seriam meios para o desenvolvimento de tais competências. O desenvolvimento da capacidade de expressão em diferentes linguagens; de compreensão de fenômenos que vão da leitura de um texto ou um gráfico às ciências humanas ou naturais; de construção de argumentações consistentes na análise crítica das mais variadas situações; de enfrentamento de situações-problema em diferentes contextos; de extrapolação de diagnósticos, realizando propostas de intervenção na realidade, em sintonia com os valores e os projetos partilhados, eis aí um quinteto de competências que foram propostas para atualizar o trio Ler, Escrever, Contar. O Enem não nasceu como um vestibular, para examinar o conhecimento de conteúdos específicos. Nem como um processo seletivo, classificatório, para ingresso no Ensino Superior. Ele tinha as características de um diagnóstico do sistema de educação básica, ao final do Ensino Médio. Hoje, o Enem se descaracterizou completamente. Tornou-se um processo seletivo, um mecanismo de acesso ao ensino superior, um exame vestibular, e como tal, é um exame de baixo nível. A corrupção da ideia inicial do Enem evidencia, hoje, o fato de que perdemos um exame diagnóstico da educação básica e precisamos urgentemente de um instrumento desse tipo.

Coletiva – Pensando nos anos de constituição de um sistema nacional de avaliação do ensino em larga escala, há condições para criação de uma Base Nacional Comum Curricular? Essa proposta é realmente necessária?

Nilson José Machado – Há condições e há necessidade da criação de uma Base Nacional Curricular, mas não da forma que está sendo feita. E a abertura de espaços para a apresentação de sugestões para aperfeiçoar o material que está sendo oferecido não entusiasma. É como descascar ovo mal cozido: descaracteriza, destrói. É necessário e conveniente botar o ovo na panela de água quente para ferver outra vez. Na verdade, a existência de um currículo comum em sintonia com o projeto educacional do país seria uma condição indispensável para as avaliações nacionais, seja com a intenção de diagnóstico do sistema, seja como processo seletivo para o Ensino Superior. Precisamos de ambos os processos, o que exige diferentes instrumentos. Ao se transformar em mero processo seletivo, o Enem deixou de ser diagnóstico. Precisamos de uma BNCC e de uma matriz de descritores que apresentem continuidade entre as exigências do Ensino Fundamental e as do Ensino Médio. Na verdade, no entanto, não temos uma BNCC porque não temos clareza com relação ao projeto educacional do país. Não temos projetos de Estado para a Educação; temos, no máximo, projetos de governo ou, mais frequentemente, de governantes. Muda o ministro e pode mudar tudo. Em 2015 tivemos três ministros, todos embaralhados com problemas financeiros, com questões contábeis, mas sem pensar na educação do país em sentido amplo, como o fizeram Anísio Teixeira ou Darcy Ribeiro. Podíamos concordar com ou discordar de Darcy Ribeiro, mas ele pensava no país e não apenas na contabilidade diária do MEC.

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