Ao longo das últimas décadas, a mentalidade geral a respeito do parto foi se acostumando a interpretá-lo como evento médico e hospitalar. Instruídos pelos partos de novelas e filmes, nos habituamos a ligar as sirenes da preocupação ao menor sinal de trabalho de parto, como se isso fosse unicamente risco, e a corrermos para o hospital, onde, então, mulher e bebê estariam a salvo. Cada vez mais, passamos a confiar no poder salvador do médico, na superioridade do ambiente hospitalar, na incapacidade do corpo feminino em resolver o parto por si mesmo. Aos poucos nos acostumamos a encarar com estranhamento e medo a fisiologia do parto espontâneo, e com naturalidade os nascimentos ocorridos por meio de uma cirurgia que abre, no ventre da mulher, uma via alternativa àquela já existente e que ao longo da história da humanidade veio se comprovando eficaz. Essa acumulação de pequenas ou grandes convicções terminou por reforçar um imaginário a respeito do parto que muito condiz com o modelo de assistência médica vigente no país. Atualmente, mais da metade dos partos são cirúrgicos. Na rede particular, as estatísticas são ainda mais alarmantes: nove em cada dez mulheres dão à luz por meios operatórios. Esses dados colocam o Brasil na condição de país que mais pratica a cesariana. Se, por um lado, o aperfeiçoamento e domínio da técnica cirúrgica remete a certa ideia de progresso, cujos benefícios na redução das taxas de mortalidade materna e fetal são inegáveis; por outro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) encara como um inequívoco retrocesso a sua adoção generalizada e desregulada. Frente a esse contexto, assistimos a um movimento de questionamento, desconstrução e desnaturalização da mentalidade que nutre e se espelha no nosso modelo de assistência. Esse movimento materializa-se na intimidade das decisões de gestantes, mães e casais que optam, por exemplo, por um parto domiciliar ou em casa de parto, pela assistência de uma parteira ou obstetriz, pelo acompanhamento de uma doula etc. É uma realidade que se consolida nos diversos grupos de discussão e apoio existentes pelo Brasil e voltados para educação perinatal. Essa mobilização envolve profissionais de saúde, pesquisadores, feministas e simpatizantes da causa de humanização da assistência e de reflexão sobre a forma como o nascimento vem sendo tratado no país. Como tem se tornado comum em nossa época, tudo isso conta com o enorme poder da internet e das redes sociais, onde rotineiramente milhares de pessoas divulgam informações, vídeos e textos a respeito do assunto. Um movimento descentralizado e heterogêneo, que na verdade abarca várias lutas, desde as mais intimamente individuais, até as grandes causas coletivas. Trata-se de algo disforme, mas suficientemente concreto para passar a mensagem de que o modelo nacional de assistência ao parto e nascimento vem incomodando muita gente. Com a intenção de contribuir para o debate, a Revista Coletiva dedica este número ao tema. Sendo o principal compromisso da Coletiva o de fomentar a divulgação científica na área das humanidades, o conjunto de artigos busca dar uma visão abrangente de algumas das questões levantadas no meio acadêmico a respeito do tema. A antropóloga Fabíola Rohden abre a série de artigos traçando um panorama histórico da chegada do médico à cena do parto. A popularização dessa nova configuração de assistência subjugou o modelo costumeiro, desempenhado exclusivamente por mulheres. Os dois artigos seguintes tratam justamente da atuação das parteiras tradicionais, que são realidade em várias cidades brasileiras, principalmente no Norte e Nordeste do país, quase sempre em localidades de difícil acesso. Enquanto a pesquisadora Socorro Araújo aborda o universo de atuação dessas parteiras em Pernambuco, a antropóloga Soraya Fleischer escreve a partir de sua experiência etnográfica com parteiras no Pará. Os dois artigos seguintes aprofundam o debate sobre o cenário do parto acessível para a maioria da população. O texto das pesquisadoras Sonia Hotimsky, Janaína Aguiar e Gustavo Venturi aborda a questão da violência institucional nas maternidades brasileiras. Já o de Daphne Ratnner toma como foco os avanços das políticas públicas de humanização da atenção ao parto no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Finalmente, os dois últimos artigos abordam a questão do parto na perspectiva do feminino. O texto da socióloga Camila Melo explora a relação entre o modelo de atenção humanizada e o desenvolvimento de uma parturiente ativa, consciente de seus direitos e vontades. Já o da antropóloga Rosamaria Carneiro discute os deslocamentos conceituais em torno das ideias de risco e perigo entre as mulheres que buscam um parto humanizado. O presente número traz ainda uma entrevista com a pesquisadora Simone Diniz e uma reportagem sobre a prática das festas de comemoração do nascimento em maternidades do Recife. A sessão Memória reúne alguns registros ligados às primeiras cesarianas realizadas com sucesso no Recife, na década de 1920. Editora temática: Mariana Portella | Editores: Alexandre Zarias, Allan Monteiro e Pedro Silveira | Capa: Gustave-Joseph Alphonse Witkowski. Fig. 33. Un accouchement en Pensylvanie, d’après Engelmann. Histoire des accouchements chez tous les peuples. Paris: Stenheil. 1889. | Entrevista: Simone Diniz | Fotografia: Cecília Bastos/Jornal da USP | Reportagem: Beatriz Albuquerque, Flora Freire e Júlia Teles | Artigos: Fabíola Rohden, Soraya Fleischer, Maria do Socorro Araújo, Sonia Nussenzweig Hotimsky, Janaina Marques de Aguiar, Gustavo Venturi Jr., Daphne Rattner, Camila Pimentel Lopes de Melo, Rosamaria Carneiro | Memória: Allan Monteiro, Mariana Portella e Emanuela Sousa RibeiroO fato de o parto ter se tornado assunto frequente na mídia, presente também nas redes sociais e rodas de conversa, pode ser encarado como um sinal de que algo vem mudando ou precisa ser mudado no cenário da assistência obstétrica brasileira.
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