O regional indefinido Sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. Guimarães Rosa. A definição de sertão se expande do geográfico, espaço de uma larga comunidade cultural, lugar comum (e lugar-comum) de certas propriedades climáticas, para abranger um estado de espírito, uma atitude ante a vida. Sertão, para além de ser um conjunto de práticas, de ideias e imagens que se articulam em múltiplos significados trazidos pela tradição e que perfazem a percepção coletiva do que chamamos cultura sertaneja. É também a prefiguração de um modo de ver a vida. Com a notável mobilidade das coisas culturais no contemporâneo, as representações do ser sertanejo vão variar muito. Basta pensar o peso de presença do sertão em três momentos da literatura: a) Galiléia, o romance recente de Ronaldo Correia de Brito; b) Vidas secas, de Graciliano Ramos; c) e Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. São três ângulos que dizem três momentos de uma mesma realidade cada vez mais complexa: o sertão. O modelo migratório, que então definia o sertão, cede agora à imagem da conexão: um sertão mais antenado com o mundo. Em Galiléia, as mulheres pastoreando o gado de moto… é uma figura emblemática dessa mudança. O romance de Ronaldo Correia expõe um personagem perplexo e dilemático ante a visão do sertão – que é o mesmo e, simultaneamente, já é outro. Adonias, o médico-narrador, volta aos lugares de sua juventude para ver um velho agonizante. Ismael, um filho trânsfuga, onde quer que vá, traz o sertão em si; há uma beleza áspera nessa fidelidade. Davi, outro personagem, já não sente filiação alguma com esse mundo bárbaro. E são, na bela imagem de Ronaldo, planetas sem órbitas, cometas em colisão, vagando pela casa arruinada. A empreitada de Guimarães Rosa alargou o conceito de regional já trabalhado na narrativa dos escritores dos anos 30: Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos ou Jorge Amado, quando o sertão é visto dentro de uma categoria espaço-temporal delimitada e definida pelas injunções sociais. Essas demarcações identitárias anteriores criaram um referencial fechado que delimitava o sertão a um certo estereótipo, uma imagem convencional que trazia a vantagem de fazer circular facilmente, embora reduzindo o Outro a poucos traços. Há uma poderosa força coercitiva no estereótipo da identidade – a que nem sempre a crítica atual esteve atenta. Guimarães Rosa vai redimensionar as novas fronteiras, dramatizadas na relação entre história e estória, entre realidade e ficção, enfim, entre literatura e cultura. Sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. (p. 187). E sertão passa a ser um significante mais abrangente, numa perspectiva multi-identitária, para dar conta da heterogeneidade cultural, do hibridismo que o constitui, quando olhado mais de perto: Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fecho. À primeira vista, parece que a continuidade prevaleceu na representação de traços definidores do que seja o sertão. Embora o tempo no sertão também se alargue em durée, para dizer o ritmo da estabilidade cultural que o caracterizou até então, o ser sertanejo não escapa à mudança e variação – ainda que paulatina ali e mais frenética aqui. Riobaldo foi educado por seu pai/padrinho Solarico Mendes, no culto dos grandes chefes. Solorico Mendes é admirador das altas artes de jagunço. Nas eras de 1878, conheceu o famigerado Neco, que tomou Januária e Carinhanha. Entende-se por que, no final, sabendo das façanhas do Riobaldo-jagunço, o reconhece testamentário (p.383). A Coluna Prestes passa por Paracatu, demarcando sinais de um outro tempo chegando ao sertão, abalando suas estruturas sociais e econômicas. O descaso político, a pobreza da região, nada disso vai ser negado em Guimarães Rosa, embora ele melhor se empenhe em mostrar o impacto das transformações, ainda que lentas, nas populações rurais. Por isso diz Antonio Candido, com muito acerto, que, no Brasil, a literatura fez as vezes de conhecimento sociológico e nos ajudou a nos interpretarmos e criticarmos a nós mesmos. Tempos do sertão O tempo de Guimarães Rosa é um tempo de transição, quando os elementos urbanos acenam para o sertão. O Fabiano de Vidas Secas é empurrado pelas contingências adversas a fugir de seu chão. (Fuga é o 1º episódio de Vidas Secas; Mudança é o último). Riobaldo, do Grande Sertão-Veredas, começa de onde Fabiano finda: mudança. O romance de Ronaldo Correia transcreve um impasse: impossível voltar ao que já não é mais. Temática recorrente ao longo do texto. A mudança, a viagem, o movimento: por onde passam os sentimentos de admiração, de surpresa, de indignação, de cumplicidade, ante a variedade da vida. Eu acho que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo. (p.299). E, em outro momento, e de modo magistral como registro da dinâmica ontológica em Guimarães Rosa: O senhor… mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas estão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. (p.20). Se Merquior chama ao texto um épico órfico é que, de fato, há uma matriz de desenvolvimento pessoal, própria do romance de formação cujo modelo é já bastante conhecido de Guimarães Rosa: Anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe. O tema da viagem de aprendizagem, de busca de si, da descoberta do caminho pessoal por entre os múltiplos equívocos da vida, aí está o contorno do romance roseano. Zé Bebelo se levanta como o modelo mais maduro, já saindo de si, do emaranhado das questões pessoais e se pondo a serviço da sociedade, do progresso do sertão. Riobaldo percebe os limites de Zé Bebelo, percebe que nunca ninguém amadurece por inteiro, e o admira: Eu gostava de Zé Bebelo como um filho gostava de um pai. (p.113). Por que há muito de quixotesco em Zé Bebelo. Ele crê poder transformar o sertão, levantá-lo em progresso. A admiração de Riobaldo é por quem não envelheceu, quem se recusa a transformar, com os anos, em sabedoria triste, seu cansaço. Em Galiléia – uma pedra de toque na definição do romance nordestino contemporâneo –, Ronaldo Correia questiona o que é ser nordestino hoje. Os três vão aos sertões do Inhamuns ver um avô agonizante. Adonias, já largamente aculturado, vê o sertão com distanciamento. Ismael, de ascendência indígena, é os lugares onde se fez. O velho Raimundo Caetano, conservador, leitor do Levítico, é aquilo que a retórica bíblica perpassa de certezas supostamente inabaláveis. O romance ocorre num tempo de mudança, entre a configuração estabelecida, a imagem do sertão sedimentada pela tradição e o surgimento de novos elementos que redefiniriam o universo sertanejo. O tempo anterior a Riobaldo é um tempo de homens antigos, como diz o texto. Os heróis são ainda inteiriços, como projeção continuada do épico: representantes de uma comunidade de que são porta-vozes. Titão Passos, Joca Ramiro, Medeiro Vaz – os nomes referenciais da organização cultural antiga. Joca Ramiro imperador de três alturas! (p.117). Sô Candelário galopava em frente de todos. Se ia – feito o rei dos ventos. (p.157). O imaginário deste sertão desfralda bandeiras e estandartes armoriais como os que Ariano Suassuna vai recuperar e transfigurar num grande romance como A Pedra do Reino. Nesses estandartes, brilha a força plasmadora da criação do simbólico sertanejo, destacado do fundo vivo da trama cultural que lhe dá sustentação e sentido. E onde, a despeito da rudeza da vida, a beleza esplende. Medeiro Vaz age como um paladino: se desfaz de seu passado, monta num ginete, com cachos d´armas, junta gente corajosa, rapaziada dos campos e sai por esse rumo em roda, para impor a justiça. O modelo longínquo é medievalesco: Rolando é bravo, valoroso; Olivier, sábio. Os homens antigos – que esses heróis do presente re-presentam, repetem gestos e postura daqueles. Riobaldo os admira: E sempre dei um trato respeitável aos homens de valia mais idosa. (p. 338). Riobaldo, Zé Bebelo: os homens da transição. Admiram o valor inconteste dos homens antigos, sabendo que estão num outro tempo, que já não mais é possível imitar seus feitos. Aqueles, são almas éticas: não duvidam, creem ver claro o Bem e o Mal. Quem é inteirado valente. Esse também não pode deixar de ser bom. Tal Medeiro Vaz, que é aqui exemplar, manuseando, com a mesma desenvoltura, tanto o rosário como as armas, sem hesitação. Riobaldo, no entanto, embora os admire e reconheça, está dividido – tal como Adonias, em Galiléia – já entre dois tempos. Daí, de sua dúvida, sua dificuldade em viver e entender um sertão em mutação: Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo (p.17). À astúcia linguística (consertar: o lance ético, de reparar os desmandos; e concertar: o seguir a tradição, estar concorde) se junta aqui à finura psicológica de acatar, mas relativizando: mas cada um vê e entendo as coisas dum seu modo. Já há um distanciamento crítico, nesse elogio restritivo. Eu, sem segurança nenhuma, só as dúvidas. (p.362). E o narrador prolonga o efeito de hesitação, de indecidibilidade. As dívidas de Riobaldo: oscilações assimétricas do trapezista no movimento para o alto. Ele sabe-se em um mundo em mutação: Tudo o que está escrito tem constante reforma. (p. 344). A prosa de Guimarães Rosa é andante, variada, em movimento, porque Riobaldo é um ser em andamento: Eu era assim. Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutu-Branco, — depois de ser Tatarana, e de ter sido o jagunço Riobaldo. (p.346). Na verdade, a interrogante é que define o texto: quem foi que foi o jagunço Riobaldo? Aqui, o compadre-meu-Quelemém tem a função de guiamento retrospectivo: Riobaldo confia a ele o esclarecer do mistério da vida. Mesmo sabendo, depois, que nenhuma resposta deixa de insatisfazê-lo. Conto minha vida, que não entendi. Aqui ainda, há uma perceptível radicação órfica: o narrador confia à palavra, na forma do diálogo com o interlocutor tácito, a tarefa de criar. Criar um agenciamento entre as coisas; criar, por consequência, um sentido. No que narrei, o senhor talvez ache, mais que eu, a minha verdade. (p.380). Não é outra a aposta analítica. Entre pedras e parabólicas Fabiano (Vidas secas) é o homem forçado a ir para a cidade. Adonias (Galiléia) é alguém dilacerado por uma fidelidade impossível: a readequação ao sertão implica em mutilação de si, das tantas vivências que agora fazem parte dele e que já não cabem ali. Riobaldo (Grande-sertão: veredas) é o homem moderno, já perdida a inocência anterior, que permitia o grande gesto ou a crueldade sem sofrer maiores dúvidas. Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma. (p.240). Duvida de si, da razão, dos demais, dos valores dados por evidentes. Sua identidade se ergue em interrogação: (…) mas, eu, o que é que eu era? (p.250). Ao longo do texto, a interrogação indefine Riobaldo: Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. (p.266). Medeiro Vaz, grande do sertão, é homem distante já, podendo ser visto com a admiração que a distância propicia: Mas Medeiro Vaz era homem de outras idades, andava por este mundo com mão leal, não variava nunca, não fraquejava. (p.29). Em Guimarães Rosa, há, no entanto, o cuidado em não imobilizar o mundo movente do sertão num conceito estanque. O Guimarães sertanejo não se finca no chão, feito minhoca (a imagem vem no julgamento de Zé Bebelo), mas aflora e se alarga com a atração de Riobaldo por outras formas de viver, outras formas de saber. Ele sente então a atração da cidade. Mesmo quando a atração pela cidade se diz pela denegação, pelo despeito: Raiva surda das grandes cidades que há, que eu desconhecia. (p.328). O modelo do homem da cidade é o Wuspes, interlocutor quase mudo, que serve de ponte movediça, de elemento deflagrador das mudanças já se operando em Riobaldo, que incorpora muito do imigrante alemão. O sertão se soma ao que passa por ele. Riobaldo, na busca de si, muito diz e dá-se; o que recebe, no entanto, fica sub-reptício, como revelação no silêncio do outro. Há um acordo tácito entre o narrador e o interlocutor: Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. O outro é, portanto, uma necessidade; seu silêncio, uma condição. Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta. (…) O senhor não me responda. No entanto, esse silêncio estratégico, na análise, deflagrador da fala, toma outra espessura depois de um longo silêncio. E tem seu momento de presença expectante: Mais hoje, mais amanhã, quer ver que o senhor põe resposta. Mas o narrador intui o risco da resposta imediata, quando a fala vem por temor de o silêncio ser tido por hostil. Ali o silêncio é uma atenção à fala. Assim, o senhor já me apraz. Agora, pelo jeito de ficar calado alto, eu vejo que o senhor me divulga. (p.75). Há um tempo atrás, dizia Sylvio Romero: “A grandeza futura do Brasil virá do desenvolvimento autônomo de suas províncias. Os bons impulsos originais que nelas aparecem devem ser secundados, aplaudidos… Não sonhemos um Brasil uniforme, monótono, pesado, indistinto, nulificado, entregue à ditadura de um centro regulador das idéias. Do concurso das diversas aptidões das províncias é que deve sair o nosso progresso.” Os homens antigos ainda estão ali – e já pertencem a um outro tempo. Um imaginário se desvanece: O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do Urucuia – aonde tanto boi berra… (p. 25/26). O sertão de Rosa não é mais o de Euclides, quando uma linha parecia separar duas culturas de um Brasil ainda mais cindido. O de Rosa ou de Ronaldo é um sertão que se mescla e mistura, sem perder seu caráter, determinada configuração cultural; mesmo no presente, entre pedras e parabólicas. Mas resta, como quer o tio Salomão, em Galiléia – e ao alcance de todos –, a áspera poesia do sertão. E lembra Lévi-Strauss: para que persistam em suas diversidades, as culturas precisam de uma certa impermeabilidade (Le regard éloigné). O sertão é maior que nossa compreensão dele. Para saber mais BRITO, Ronaldo Correia de. Galiléia. Rio de Janeiro, Alfaguara Brasil, 2008. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Ateliê Editorial/Imprensa Oficial do Estado, São Paulo, 2001. JABOATÃO, Frei Antonio de Santa Maria. Novo Orbe serafico brazilico ou Chronica dos frades menores da provincia do Brazil. Impressa em Lisboa em 1761, e reimpressa por ordem do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro, 1858. MERQUIOR, José Guilherme. O Elixir do Apocalipse. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983. RAMOS, Graciliano Ramos. Vidas Secas. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2007. ROSA, João Guimarães de. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994.
De fato, o conceito de regional, conforme a tradição literária recente, é um leito de Procusto para um empreendimento de outra envergadura. O próprio Guimarães Rosa, em carta ao tradutor Edoardo Bizzari, (Rio, 25/11/1963) avalia seu trabalho em Grande-Sertão dando pontuação maior às perquirições metafísicas e poéticas que ao cenário e à realidade sertaneja. Daí sua insistência e seu propósito em dar ao sertão uma dimensão metafórica: Sertão (…) Travessia perigosa, mas é a da vida (p.344). Aqui está o diferencial de Rosa e os textos anteriores versando sobre sertão, seja o de Euclides, seja o de Graciliano Ramos ou o de Ronaldo Correia. Ou no texto de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (Embora só publicado em Lisboa em 1761, o texto é, em sua primeira mão, de 1585). Lá, situando Olinda, o frade fala a partir do Monte onde está assentado o Mosteiro de São Bento, próximo ao Palácio dos Governadores – pouco depois desce pela “falada Ponte do Varadouro”. Serve esta de dar passagem aos que entram e saem da cidade e recôncavos da terra, como Salinas, Vargem, Matas de São Lourenço, Tracunhaém e mais sertões. Notável: depois de Tracunhaém, os sertões começam. Então, naquele momento, a paisagem desconhecida que mal se vislumbra ao longe, é sertão. Sertão volta a ser, em Guimarães Rosa, esta exploração do desconhecido ali próximo, nas fronteiras de si mesmo. Passada a segurança dos limites de Olinda, Matas de São Lourenço ou Tracunhaém, na concepção da época, já é sertão. O que está ao lado ou dentro do território, mas ignorado. A metaforização que Rosa vai fazer levanta o sertão para dentro: Sertão é sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? Sertão é dentro da gente (p.199).
Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Pernambuco e atua na área de literatura e cultura no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).