A existência de novas territorialidades tem ganhado vulto a partir das políticas de reconhecimento que começam a se estabelecer no Brasil no final da década de 1980 e que têm a pluralidade como um de seus princípios. A Constituição de 1988 representa significativa mudança de paradigma em relação ao reconhecimento de novos direitos e novos sujeitos de direito no contexto brasileiro. Sua implementação tem trazido grandes desafios, considerando a tradição agrária brasileira e a sua estrutura fundiária, que acabaram por definir as relações entre diferentes segmentos da sociedade e grupos de controle do poder que exerceram sua hegemonia com base na violência física e simbólica. A presente reflexão discute os desafios que enfrentamos no momento em que o Nordeste se depara com uma nova onda desenvolvimentista que coloca em discussão a presença de povos e comunidades denominadas tradicionais nas áreas afetadas por velhos e novos interesses. A necessidade formal de identificação de comunidades tradicionais ou “especiais” no caminho do desenvolvimento da região e, particularmente, do Estado de Pernambuco, tem explicitado os conflitos de interesses e dado visibilidade ao pluralismo rural brasileiro. Dentre as categorias que compõem o que poderíamos denominar povos e comunidades tradicionais, estão aquelas que hoje conhecemos como indígenas e quilombolas. Historicamente, o sertão dos atuais estados de Pernambuco e Bahia, escolhidos como forma de aproximação empírica, é marcado pela presença diversificada de etnias indígenas. As antigas comunidades indígenas ribeirinhas do São Francisco, em sua maioria do grupo linguístico Tapuia Kariri, associadas ao tronco cultural Macro-Jê, conheceram, a partir da segunda metade do século 17, o projeto colonizador da região, marcado, sobretudo, pela presença de missionários Capuchinhos. Nessas missões religiosas, a partir do momento inicial de contato e implantação, eram reduzidos, isto é, trazidos e catequizados, índios de diversas etnias, que se amalgamavam num todo pluriétnico, ao qual os Tupi costeiros do século 16 já se referiam como Tapuios, ou seja, povos de língua enrolada, não falantes do Tupi-guarani. Uma imagem genérica herdada pelo branco, como sinônimo de índio bravo, selvagem, arredio à civilização. Entre os últimos anos do século 17 e quase todos do século 18, iniciou-se um processo deliberado de invasão dos territórios indígenas com o empreendimento do gado bovino. O sistema socioeconômico dos currais passou a competir diretamente com as missões no espólio dos recursos naturais e humanos, das caatingas e dos Tapuias. Longe de ser um processo de fácil dominação, o período subsequente foi caracterizado por intensa mobilização de vários povos que tomou forma de invasões e saques, sublevações espalhadas por todo o Nordeste, se opondo à estrutura das fazendas curraleiras do semiárido, pertencentes, em sua maioria, aos Garcia D`Ávila, da Casa da Torre, que detinham as maiores concessões territoriais da coroa portuguesa sobre os sertões do Piauí à Bahia, entre os séculos 17 e 18. Esse processo ficou historicamente conhecido como “a Guerra dos Bárbaros” e culminou com desagregação da maioria dos grupos indígenas que o encamparam, sendo frequentemente considerado como um período de franco extermínio da diversidade étnica do Nordeste. Como resultado, tivemos a dispersão e o silenciamento dos revoltosos. Porém a diversidade do Sertão nordestino não se restringe aos povos indígenas. Apesar de o Sertão, segundo os historiadores, não ter sido uma região caracterizada pela escravidão, foi, sim, uma região propícia para o refúgio de negros e índios, o que reforça a unanimidade dos relatos quanto à condição de não escravos. Clóvis Moura aponta que, no sertão nordestino, a presença do negro não foi fundamentada no trabalho, mas que ele apareceu como “pertubador da economia, como fugitivo, como quilombola”. Abdias Moura (1985) se refere a esse contexto para justificar os poucos dados estatísticos encontrados sobre a presença no negro nos tempos passados. Esse autor faz alusão, no caso de Pernambuco, a uma das raras estatísticas disponíveis na atualidade, que foi publicada pelo jornal Diario de Pernambuco no século 19, apresentando dois quadros representativos “dos escravos matriculados nos municípios da Província, estavam anotados 477 em Floresta, 237 em Buíque e 173 em Tacaratu, no sertão do São Francisco. Um outro documento citado pelo mesmo autor, esse de 1873, faz uma referência genérica aos habitantes dessa mesma área da seguinte maneira: “a maior parte dos indivíduos a que nesta Província se dá o nome de índios são de uma raça já degenerada; os pretos, pardos, mais ou menos fulos, que vivem com os índios, todos são também conhecidos sob esta denominação”. Data aproximadamente de meados do século 19 o “retorno” do domínio dos fazendeiros sobre a região, impulsionados pela revitalização da navegação fluvial no São Francisco e, certamente, pela Lei de Terras de 1850, dispositivo imperial que extinguiu a herança das sesmarias coloniais e propiciou a “corrida cartorial” dos grandes herdeiros do sertão interessados em assegurar e expandir seus domínios. É também nessa segunda metade de século 19 que o patrimônio reconhecido a igrejas e capelas coloniais sob a posse de populações tradicionais de negros e índios é redemarcado e registrado. Podemos perceber que, da mesma forma que várias categorias relativas à origem, à raça, à etnia eram computadas sob a forma de uma única denominação, a de índio, o mesmo pôde ocorrer com a categoria negro, escravo e até branco, o que dificulta a utilização dos documentos oficiais para tentar recompor a ocupação da região, se utilizarmos um viés parcial, deixando de interpretá-los. O ideal de liberdade associado ao estigma de estar à margem de uma sociedade provocou, em muitos momentos no sertão nordestino, a cooperação entre negros e índios, que, conforme já foi colocado anteriormente, deram conformação a territórios em que essa aliança representava a existência de uma organização à parte, fora do controle colonial. Tais presenças e alianças foram ofuscadas durante séculos com a projeção de um ambiente pretensiosamente homogêneo, que só começa a ser desvelado, a partir de 1988, com o reconhecimento oficial, por parte do Estado, do caráter plural que reveste a sociedade brasileira. Este tem se configurado com um rico processo em curso de afirmação de uma identidade étnica que demonstra quão complexa é a constituição do que é genericamente denominado como “rural” ou “camponês”. Duas questões de destaque parecem se articular com um novo momento para o Sertão, no cenário desenvolvimentista brasileiro da primeira década do século 21, e têm assumido importante lugar nos noticiários e também têm influenciado as ações do Estado: o apelo econômico desenvolvimentista, com base no agronegócio e nos grandes empreendimentos, e um novo discurso, que, transfigurado de arrojado, só vem expor velhos problemas: o ambientalismo. O que faz as duas questões quase que coincidentes, apesar de baseadas em princípios diferentes, é o mesmo que alimenta a tensão há séculos e está na base da gestação do conflito que hoje se configura: a resistência em reconhecer o direito à terra no Brasil, quando este se associa, de forma substancial, ao direito de se reconhecer diferentes territorialidades e, por consequência, às diferentes gestões de recursos naturais e de uso da terra. As reformas constitucionais na América Latina que ganharam fôlego a partir da década de 1980 têm trazido a possibilidade de pensarmos em outras lógicas que se desdobram em novas normatividades, cuja palavra central é a pluralidade, pautada, fundamentalmente, nas experiências dos povos e comunidades tradicionais. A relação com o Estado tem se reconfigurado, principalmente devido aos novos lugares assumidos pelos “novos” movimentos sociais que têm objetivado seu potencial identitário com base em diferentes demandas, como as específicas de grupos étnicos e raciais, de minorias sexuais, de defesa do meio ambiente, entre outros. A categoria de “povos e comunidades tradicionais” tem se destacado e aglutinado boa parte dos movimentos acima citados ao colocarem como pauta comum a defesa de territórios e do uso tradicional dos recursos naturais. Aurélio Vianna Júnior apresenta o paradoxo de esses movimentos serem denominados “novos”, ao mesmo tempo em que se baseiam da “tradicionalidade”. Seriam novos por estabelecerem descontinuidade com os movimentos previamente existentes de sindicatos de trabalhadores rurais e tradicionais por serem primordialmente baseados na afirmação de identidades sociais e culturais com relevantes dimensões territoriais, demandando suas terras e territórios como bens de uso comum e, portanto, opondo-se diretamente ao mercado de terras e “comoditificação” (transformação em mercadoria) dos recursos naturais (VIANNA, 2010, p. 111-2). Apesar de um discurso dominante desenvolvido a partir de uma historiografia oficial que deu relevância aos documentos produzidos a partir dos registros oficiais, o sertão do Estado de Pernambuco se constituiu enquanto região fisiograficamente delimitada como um palco de sublevações e rebeldias que nos fazem pensar sobre o caráter homogêneo e domesticado do mesmo. Rememorando um de meus trabalhos de campo, junto ao povo indígena Kambiwá, no município de Ibimirim, em Pernambuco, lembro-me de ter ido, juntamente com os Kambiwá, visitar o pajé do povo indígena Kapinawá, que morava no centro urbano do município. Naquele momento, em frente da sua residência, encontrava-se um grande acampamento cigano. Muito próximo dali, entre os municípios de Carnaubeira da Penha, Mirandiba e Floresta, em 2005, visitei a comunidade denominada Feijão, que estava dando início ao processo de reconhecimento como comunidade quilombola e, com certa surpresa, ao invés de apenas um, identificamos, num contínuo, outros seis núcleos, que organizados entre associações e, algumas vezes, também vivendo em áreas de assentamento, identificavam-se como quilombolas. Enfim, o sertão apresenta-se como um espaço diversificado do ponto de vista das identidades sociais e culturais e de intenso fluxo e dinâmicas territoriais. Os grandes empreendimentos, seja pela mera ocupação espacial seja pela exploração de recursos naturais necessários para sua manutenção ou ainda pela apropriação de determinados conhecimentos, têm encontrado, na sua contramão, a presença de tais povos e comunidades tradicionais. Outras formas de conformação territorial também ganharam expressão sem que estejam diretamente relacionadas às demandas citadas, como as áreas reservadas, as unidades de conservação de proteção integral; porém, estas acabam compondo muitas das situações em que os pleitos das comunidades tradicionais se colocam, pois, com frequência, há sobreposição de interesses e de figuras jurídicas. A primeira delas constitui uma área de referência histórica e religiosa para os povos indígenas Kambiwá e Pipipã. Durante décadas, esses foram impedidos de acessar a Serra. Na atualidade, o acesso é permitido para a realização de seus rituais religiosos. A segunda encontra-se na área de reivindicação dos indígenas da etnia Kapinawá, por constituir seu território tradicional. Trata-se de uma reserva de grande importância biológica e arqueológica, sendo vedado e controlado o acesso dos índios. As duas situações têm ressaltado a ênfase ambientalista nos seus encaminhamentos. Seguindo a orientação de José Sérgio Leite Lopes (2004), destacamos a necessidade de compreender o caráter polissêmico do que chamamos de “meio ambiente”, o que implica em reconhecer a inexistência de uma questão ambiental a priori e.e. na verdade, de constatar que se trata de uma nova interpretação de velhas questões que agora se constituem em questões ambientais. As transformações do espaço rural nordestino foram marcadas até 1988, fundamentalmente, pelas tensões que envolvem o campesinato e a estrutura fundiária profundamente influenciada pelo latifúndio e coronelismo. Inseridos nas categorias de proletariado, pobres, pequenos agricultores e camponeses, muitos dos critérios que, na atualidade, indicam grupos marcadamente definidos por laços étnicos, ficaram subsumidos, dando uma falsa impressão de uma ruralidade cuja diversidade estava definida fundamentalmente por questões de classe. O reconhecimento da presença dos povos e comunidades tradicionais no Sertão nordestino nos leva a considerar junto com Alfredo Wagner de Almeida, na lógica dessa ruralidade, a incorporação de O neodesenvolvimentismo e o entendimento de sociedade plural brasileira que vem se estruturando fazem parte de um projeto de sociedade que traz como consequência a negação dos princípios da pluralidade, em que as dinâmicas territoriais deveriam constituir um importante elemento da ruralidade. Se quisermos atualizar nossa leitura sobre o Sertão e nos aproximarmos de uma interpretação que valorize mais os sujeitos do que a estrutura, é imprescindível partir do princípio da pluralidade não apenas como dados histórico do passado, mas como de uma projeção para o futuro que acaba por colocar em xeque os modelos vigentes, sejam esses desenvolvimentistas, sejam ambientalistas. Trata-se de dar conta de entendê-lo como um espaço social, marcado por dinâmicas e fluxos sociais, aqueles referentes aos povos tradicionais, que, ao invés de constituir problemas, podem dar boas respostas para os desafios que enfrentamos na contemporaneidade. Para saber mais ALMEIDA, A. W. Terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/UFAM, 2006. FIALHO, Vânia. Conceição das Crioulas In: Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002, p. 109-140. LOPES, José Sérgio Leite (Coord.); ANTONAZ, Diana; Prado, Rosane; SOLVA, Gláucia (Orgs.). A ambientalização dos conflitos sociais: participação e controle público da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. MOURA, Abdias. O sumidouro do São Francisco: subterrâneos da cultura brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985. VIANNA JR, A. Terra, territórios e conhecimento tradicional espacial. Cadernos de debates Nova Cartografia Social: conhecimentos tradicionais ma Pan-Amazônia.v. 1, n. 1. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/UEA Edições, 2010.2.
Vânia Fialho
Na atualidade, como aponta ainda Aurélio Vianna Júnior, vemos que:
No sertão pernambucano, dois casos que envolvem áreas de proteção integral são exemplares: a Reserva Biológica da Serra Negra, situada entre os municípios de Tacaratu, Floresta e Inajá, e o Parque Nacional do Catimbau, que ocupa parte dos municípios de Buíque, Ibimirim e Tupanatinga.

Antropóloga, professora da Universidade de Pernambuco (UPE) e membro do Núcleo de Diversidade e Identidades Sociais/UPE (NDIS).