ISSN 2179-1287
Número 6 | out/nov/dez 2011

Pensar os sertões, pensar o Brasil

Nísia Trindade Lima
Tamara Rangel Vieira

 

“(…) Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários (…)”
(Euclides da Cunha. Os Sertões, 1902)

O trecho acima compõe a obra Os sertões de Euclides da Cunha, na qual o autor narra a Guerra de Canudos – conhecido evento histórico que marcou os primeiros anos do período republicano e teve como cenário o semi-árido nordestino. Considerada um clássico pelos estudiosos do pensamento social brasileiro, a obra, publicada em 1902, foi muito bem recebida nos meios intelectuais. Desvendando uma face do país considerada nova para a maioria da sociedade brasileira, se configurou como um primeiro alerta para que o governo voltasse sua atenção para esta parte até então pouco conhecida do Brasil. Uma vez nos sertões, Euclides da Cunha teve seu olhar litorâneo confrontado com uma realidade completamente diferente e pôde descrever as condições precárias em que viviam as populações sertanejas, as quais, tal como se pode depreender da citação acima, pareciam viver em outro tempo, habitar outro país.

Este ‘retrato do Brasil’ inspirou representações acerca da nação e da identidade nacional marcadas pela compreensão de litoral e sertão como ordens sociais distintas. Embora não tenha sido o primeiro a pensar a formação histórica do país com base nesta dualidade, foi Euclides da Cunha que construiu de forma mais elaborada o argumento sobre o isolamento do sertanejo – razão do grave desequilíbrio social vivenciado pelo Brasil na época. A partir de então, este argumento passaria a integrar o amplo rol de sentidos atribuídos ao longo do tempo ao vocábulo sertão – sentidos estes que teriam em comum a compreensão dos sertões como regiões distanciadas do poder público (Lima, 1999).

Embora delimitado geograficamente na obra de Euclides da Cunha, os sertões possuem, na verdade, uma abrangência muito maior, não apenas espacial, mas também simbólica. Um breve retrospecto histórico nos mostra que desde o período colonial o referido vocábulo foi utilizado para nomear uma série de sítios distintos: o interior da capitania de São Vicente no Brasil Colônia; o oeste paulista nas primeiras décadas do século XX; a Amazônia; a cidade do Recife; a capitania de Minas Gerais; a ilha de Santa Catarina; áreas do Nordeste e Centro-Oeste brasileiros; o norte de Goiás; subúrbios da cidade do Rio de Janeiro. Apesar dessa multiplicidade de lugares por ele designados, a ideia de sertão possui sentido menos geográfico do que político-social.

Segundo Janaína Amado (1995), os sertões teriam sido definidos inicialmente pelos portugueses durante o processo de colonização. Construído em oposição às áreas colonizadas, não necessariamente litorâneas, o sertão era compreendido como um espaço vasto, longínquo e de baixíssima densidade demográfica – ‘território do vazio’ onde imperava o desconhecido, a natureza selvagem e a barbárie. Tal significado teria sido absorvido, com poucas modificações, ao longo do século XIX. Uma dessas importantes alterações relaciona-se com o projeto estatal fixado pós-independência e mantido no período republicano, qual seja, o de incorporação das regiões mais afastadas do litoral. A matriz de pensamento romântica, predominante no campo literário deste período, refletiu em seus trabalhos essa preocupação em conhecer melhor o espaço e a natureza brasileiros, numa busca incessante por consolidar um passado mítico nacional que nada poderia ter de vínculo com a antiga metrópole portuguesa. Nestes trabalhos, enaltecia-se a pátria, sua natureza exuberante e pródiga e a amenidade do clima tropical – ideal para o desenvolvimento de uma civilização aos moldes europeus. Dessa forma contribuíram para a consolidação de uma imagem ‘positiva’ acerca dos sertões e conseqüentemente do Brasil (Skidmore, 1989; Lima & Hochman, 1996).

A necessidade de incorporar e ‘civilizar’ os sertões do país permaneceu como questão para a intelectualidade e a elite política brasileira durante a República, o que fica demonstrado pelas expedições realizadas ao interior neste período. Estas expedições visavam implantar o aparato estatal nas regiões que ainda não haviam sido alcançadas pelos braços do governo, fosse delimitando fronteiras, instalando meios integrados de comunicação ou realizando pesquisas científicas. Inserem-se neste projeto, por exemplo, as viagens de Rondon (1915) e as expedições científicas promovidas pelo Instituto Oswaldo Cruz (Cruz, 1910 e 1913; Chagas, 1913; Penna e Neiva, 1916). Os relatórios destas viagens, ultrapassando seu objetivo inicial, trouxeram à tona uma realidade totalmente diferente da que vinha sendo divulgada pelos literatos românticos e, portanto, desconhecida pela maioria dos brasileiros. Coadunando-se com a percepção de Euclides da Cunha, os relatos destas viagens enfatizaram os agudos contrastes existentes entre litoral e interior e contribuíram para ampliar o grau de polissemia do vocábulo, agregando a ele as ideias de abandono, exclusão e doença (Castro Santos, 1985; Lima, 1999; Lima & Hochman, 1996, 2000 e 2004).

O tema da interiorização da capital brasileira constitui um bom exemplo de como esta ideia de incorporação dos sertões brasileiros, baseada na dicotomia que vem sendo aqui apresentada entre litoral e sertão, avança no tempo e reverbera até meados do século XX, período em que se deu a construção de Brasília. Considerada pelo presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960) como a grande meta de integração e desenvolvimento nacional, segundo ele, a interiorização da capital federal contribuiria efetivamente para a superação das desigualdades regionais decorrentes, sobretudo, do isolamento em que jazia o interior face ao resto do país. No bojo deste processo, a idéia de que ‘se construía um novo Brasil’ tornou-se recorrente em periódicos desta época, que destacavam inclusive a esperança representada pela interiorização da capital para todos aqueles que habitavam os sertões. Como vimos, a imagem dicotômica de um Brasil cindido por suas diferenças internas – dividido entre o litoral urbano, privilegiado pelas decisões governamentais, e o interior isolado, atrasado e doente – não foi um produto deste período.

Desde sua inclusão na Constituição de 1891, o projeto de mudança da capital passou por vários momentos de inflexão e, de acordo com a época, ora se mostrava promissor, ora se mostrava inviável ou era simplesmente ignorado. As oscilações vivenciadas pelo projeto estão diretamente relacionadas com os diferentes sentidos atribuídos aos sertões ao longo do tempo, os quais deixaram marcas profundas na compreensão acerca do Brasil Central. Tais marcas interferiram na viabilização do empreendimento mudancista desde que foi organizada a primeira comissão de estudos com esta finalidade, no final do século XIX. A princípio, o interior se configurou como a melhor opção para a nova capital, uma vez que contava com inúmeras riquezas naturais e se caracterizava pelo clima saudável, tal como exposto no Relatório Cruls publicado em 1894. No entanto, logo ele seria descartado, principalmente por esconder uma população isolada, atrasada e doente, seguindo o diagnóstico apresentado por Euclides da Cunha e pelos relatórios já referidos da Comissão Rondon e das expedições do IOC no início do século XX. Desde então até a inauguração de Brasília em 1960, estas diferentes concepções sobre os sertões embasariam os argumentos de todos os que se posicionavam em relação à mudança, fossem favoráveis ou não à ideia.

Um dos temas mais instigantes da imaginação política sobre o país, a mudança da capital federal e toda a retórica de integração e incorporação regional que a acompanha evidenciam uma forma de interpretar a realidade nacional, que carrega nas suas origens uma relação bastante forte com o tema do imaginário em torno dos sertões do Brasil. Do ponto de vista daqueles que participaram ativamente da construção de Brasília ou simplesmente acompanharam de perto este processo, a nova capital contribuiu efetivamente para que o Brasil Central deixasse de ser sertão e passasse a ser apenas o ‘sertão de outrora’. Embora não tenha levado à superação das desigualdades sociais que geravam a percepção da existência de dois Brasis – um do litoral e outro do sertão – Brasília contribuiu para a ocupação do Centro-Oeste e teve impacto sobre as demais regiões brasileiras. Como evento marcante de nossa história, carregado de simbolismo, a construção da capital no sertão exemplifica de forma contundente o peso da tradição de se pensar o país a partir de seus sertões.

Para saber mais

AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 08, n. 15, 1995.

CASTRO SANTOS, Luiz A. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.28, n2, 1985.

CUNHA, Euclides. Os sertões. 39° ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1997.

LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan, Iuperj/ Ucam, 1999.

______; HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (org.). Raça, Ciência e Sociedade. RJ: Fiocruz/ CCBB, 1996.

______; HOCHMAN, Gilberto. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são… discurso médico-sanitário e interpretação do país. Ciência, Saúde Coletiva. n. 5, 2000.

______; HOCHMAN, Gilberto. “Pouca saúde e muita saúva: sanitarismo, interpretações do país e ciências sociais”. In: ARMUS, Diego & HOCHMAN, Gilberto. Cuidar, controlar, curar – ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. RJ: Editora Fiocruz, 2004.

SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

VIEIRA, Tamara Rangel.  2007. Uma clareira no sertão? Saúde, nação e região na construção de Brasília (1956-1960). Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz/ Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde.

______. No coração do Brasil, uma capital saudável – a participação dos médicos e sanitaristas na construção de Brasília (1956-1960). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.16, supl.1, p. 289-312, 2009.

______; LIMA, Nísia T. A capital federal nos altiplanos de Goiás – medicina, geografia e política nas comissões de estudos e localização das décadas de 40 e 50 do século XX. Revista Estudos Históricos, v.24, n.47, p.29-48, 2011.


Nísia Trindade Lima
Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), pesquisadora titular da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC) e Vice Presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz.
Tâmara Rangel Vieira
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde e doutoranda da Casa de Oswaldo Cruz / Fundação Oswaldo Cruz (COC).

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