ISSN 2179-1287
Número 6 | out/nov/dez 2011

O semiárido face às mudanças climáticas

Edneida Rabêlo Cavalcanti

 

É em nossos pulmões que nos ligamos à grande corrente sanguínea aérea do planeta Terra, e desse modo a atmosfera nos inspira, do nosso primeiro ao último sopro de vida.
Tim Flannery (Os senhores do clima, 2007)

Clima e as mudanças ambientais globais

O clima é um conceito utilizado para descrever as características gerais do tempo, em um determinado lugar. Os climas são descritos pela ciência através de dados de caráter estatístico, como a temperatura média ou as precipitações médias anuais. Caracteriza-se, assim, o clima de uma região como quente ou frio, úmido ou seco. Sem dúvida os climas mudam, e essas mudanças influenciam de maneira drástica as oportunidades para a vida. O clima na Terra sofreu extremas transformações ao longo do processo evolutivo do planeta.

As mudanças globais atuais, entretanto, são caracterizadas por sua maior rapidez, intensidade e abrangência. Além disso, os impactos das atividades humanas se fazem sentir em praticamente todos os sistemas naturais do planeta sem que sejam acompanhadas pela capacidade de adaptação e de coevolução entre os sistemas sociais e naturais. A incerteza e imprevisibilidade também acompanham os padrões atuais das mudanças.

As mudanças ambientais também possuem forte correlação com questões relativas à distribuição do ônus causado pelo desequilíbrio nos ecossistemas. Trazem embutidas questões éticas e de justiça socioambiental. De acordo com a publicação Cuatro grandes retos, una solución global: Biodiversidad, cambio climático, desertificación y lucha contra la pobreza, de Gonzáles e Montes, habitantes de países desenvolvidos são capazes de se adaptar com mais facilidade às mudanças na disponibilidade de serviços, porque podem substituí-los por meio da tecnologia, quando se tornam escassos. Nos países do sul, em especial em comunidades rurais, esta substituição é mais difícil, tornando esses grupos mais vulneráveis às mudanças na integridade dos ecossistemas, que, com frequência, se traduzem em perdas de produtividade agrícola, contaminação das águas, erosão e perda de fertilidade dos solos, ou falta de proteção diante de eventos climáticos extremos ou catástrofes naturais.

Na última década, têm sido recorrentes os esforços para tratar os grandes desafios socioambientais por meio de soluções globais. Da mesma forma, são várias as iniciativas para compreender os vínculos entre a luta contra a pobreza e as três grandes convenções ambientais internacionais (mudança climática, biodiversidade e combate à desertificação).

O aquecimento global provocado pelo incremento do efeito estufa, fenômeno responsável pelo equilíbrio de temperatura do planeta, vem desencadeando um conjunto de transformações que se articulam com outras mudanças ambientais de caráter global. A desertificação é um desses problemas, que, por sua vez, está associada de maneira direta à perda da biodiversidade através da retirada da cobertura vegetal. Efeitos  negativos ocorrem quando esta retirada é integral, em larga escala e sem considerar os serviços ecossistêmicos prestados pela cobertura florestal.

A diversidade biológica desempenha papel de destaque na maioria dos serviços proporcionados pelos ecossistemas de terras secas. As plantas sustentam a produção primária que proporciona em última instância o alimento, as fibras e a lenha e que capta o carbono, regulando dessa forma o clima global. Além disso, juntamente com a diversidade de organismos (micro e macro) decompositores, contribuem para a formação do solo e para a ciclagem de nutrientes. Sua presença é fundamental para regulação da infiltração decorrente da precipitação e, por conseguinte, para o equilíbrio do escoamento superficial.

A exposição e degradação dos solos das terras secas podem, por sua vez, liberar quantidades significativas de carbono, tanto orgânico como inorgânico, contribuindo para o acúmulo já existente no sistema climático global. O solo representa uma capa limite entre o ecossistema terrestre e a atmosfera com a qual interage permanentemente, recebendo umidade e mantendo um contínuo intercâmbio de gases, compostos e fluxos energéticos. Além disso, fatores externos como a radiação solar, que proporciona temperatura ao solo, também se vê afetada pelas condições atmosféricas. Os processos de formação e evolução do solo se ajustam ao longo do tempo às condições climáticas predominantes.

Já o efeito da mudança climática na desertificação, além de complexo, tem sido pouco estudado. Contudo, os dados do Quarto Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2007) apontam na quase totalidade dos cenários trabalhados para um aumento de temperatura nas terras secas, que, por sua vez, passa a ter ocorrências de eventos extremos, secas e estiagens. É que, com temperaturas mais altas, a evapotranspiração passa a ser maior, ampliando a quantidade de vapor d’água na atmosfera, que tanto contribui para o efeito estufa e a tendência de aumento de secas, como também amplia a umidade e a possibilidade de chuvas concentradas, com grande volume de água e risco de enchentes.

Os cenários de mudanças climáticas globais e os rebatimentos no Brasil

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) é um órgão criado em 1988 pela Organização Meteorológica Internacional (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio ambiente (PNUMA). Em seu quarto relatório, de 2007, conclui, com acima de 90% de confiança, que o aquecimento global dos últimos 50 anos é causado pelas atividades humanas e recomenda que o aumento médio da temperatura do planeta seja de, no máximo, 2 oC.  O Painel desenvolveu uma série de cenários de emissões, cada qual baseado em diferentes hipóteses sobre variáveis que têm um efeito no aquecimento global, como, por exemplo, crescimento populacional, crescimento econômico, distribuição de riqueza, grau de avanço tecnológico, cooperação internacional, eqüidade social e ambiental, e o grau de dependência em combustíveis fósseis no futuro.

O IPCC trabalha com modelos climáticos que são construções numéricas altamente complexas. Contudo, mesmo com os avanços ocorridos, ainda persistem dúvidas sobre a capacidade de previsibilidade desses modelos no que se refere aos cenários de mudanças climáticas.

É necessário destacar que existem diferenças entre previsões e projeções climáticas, estas últimas estudando cenários relativos e não valores absolutos, utilizando cenários de forçamentos radioativos, baseados em suposições e, por isso, permeados de incertezas. Outro aspecto relativo à confiabilidade dos modelos climáticos diz respeito a sua relação com as variações climáticas naturais.

Uma tendência atual nos estudos tem sido a construção de modelos regionais, reduzindo a escala dos modelos globais para o estudo de certas regiões. Um exemplo concreto é o Atlas de Cenários Futuros para o Brasil, elaborado pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em 2007, trabalhando com a média de três modelos regionais.

O semiárido brasileiro e as mudanças climáticas

O semiárido brasileiro pode ser definido, segundo Gilberto Osório, em seu texto “Alguns aspectos do quadro natural do Nordeste”, como “a área territorial brasileira de mais baixos índices de nebulosidade, de mais intensa insolação e de mais elevadas taxas de evapotranspiração”. Nessa região, de acordo com Montenegro e Ragab, “o ambiente natural é muito frágil, e para a sua preservação, a compreensão dos processos hidrológicos é de alta prioridade. A região é altamente vulnerável à escassez de água durante a estação seca, com uma evapotranspiração potencial anual que pode ir até 2000 mm”.

É a grande irregularidade espaço-temporal da ocorrência de precipitações pluviométricas, que no contexto geográfico modifica a paisagem ao longo do ano de forma significativa. Em meio a essa irregularidade, surge o fenômeno dos veranicos, que é definido como sendo a ocorrência de cinco ou mais dias seguidos sem chuva dentro do período chuvoso de uma determinada área.

A situação atual já é vulnerável, seja pela elevada evapotranspiração, seja pela baixa vocação hidrogeológica representada pela predominância do embasamento cristalino, seja ainda pelas dificuldades da gestão pública no tocante à poupança de água.

O semiárido brasileiro será uma das regiões do país mais afetadas pelas mudanças climáticas globais. Reduções de chuva aparecem na maioria dos modelos globais do Quarto Relatório do IPCC, assim como um aquecimento que pode chegar até 3-4ºC para a segunda metade do século 21. Isso acarreta reduções de até 15-20% nas vazões do Rio São Francisco.

Segundo o Relatório do Clima do Brasil (PROBIO-GOF UK-INPE), no cenário climático pessimista, as temperaturas aumentariam de 2 ºC a 4 ºC, e as chuvas reduziriam entre 15-20% no Nordeste até o final do século. No cenário otimista, o aquecimento seria entre 1-3 ºC, e a chuva ficaria entre 10-15% menor que no presente. Essas mudanças no clima do Nordeste no futuro podem ter os seguintes impactos:

– A Caatinga pode dar lugar a uma vegetação mais típica de zonas áridas, com predominância de cactáceas. O desmatamento da Amazônia também afetará a região.

– Um aumento de 3 ºC ou mais na temperatura média deixaria ainda mais secos os locais que hoje têm maior déficit hídrico no semiárido.

– A produção agrícola de subsistência de grandes áreas pode se tornar inviável,
colocando a própria sobrevivência do homem em risco.

– O alto potencial para evaporação do Nordeste, combinado com o aumento de
temperatura, causaria diminuição da água de lagos, açudes e reservatórios.

– O semiárido nordestino ficará vulnerável a chuvas torrenciais e concentradas em curto espaço de tempo, resultando em enchentes e graves impactos socioambientais.

Porém, e mais importante, espera-se uma maior ocorrência de dias secos consecutivos e de ondas de calor decorrente do aumento na frequência de veranicos.

As projeções de mudança nos regimes e distribuição de chuva, derivadas dos modelos globais do Quarto Relatório do IPCC, para climas mais quentes no futuro não são conclusivas, e as incertezas ainda são grandes, pois dependem dos modelos e das regiões consideradas. Na Amazônia e no Nordeste, ainda que alguns modelos climáticos globais do IPCC apresentem reduções drásticas de precipitações, outros modelos apresentam aumento. A média de todos os modelos, por sua vez, é indicativa de maior probabilidade de redução de chuva em regiões como o Leste e o Nordeste da Amazônia como consequência do aquecimento global. O Quarto Relatório aponta para reduções de chuva no Norte e no Nordeste do Brasil durante os meses de inverno JJA (junho, julho, agosto), o que pode comprometer a chuva na região Leste do Nordeste, que apresenta o pico da estação chuvosa nessa época do ano.

Tais possibilidades de alterações nas precipitações, associada ao aquecimento global, trazem consequências importantes para a questão dos recursos hídricos. As evidências científicas apontam para o fato de que as mudanças climáticas representam um sério risco para os recursos de água no Brasil. Não só as mudanças do clima futuras representam risco, mas a variabilidade climática também; é só lembrar as secas da Amazônia, do Nordeste, do Sul e do Sudeste. José Antônio Marengo considera que se antes os governos preocupavam-se com o gerenciamento da água para uma população em crescimento, hoje considera-se que, para além disso, as mudanças climáticas são causa de problemas que podem afetar a disponibilidade de água. Mudanças nos extremos climáticos e hidrológicos têm sido observadas nos últimos cinquenta anos, e projeções de modelos climáticos apresentam um panorama sombrio em grandes áreas da região tropical.

Essa tendência de alterações do padrão do ciclo hidrológico ocorre em um contexto no qual existe significativa variabilidade espacial da precipitação. Isso demonstra a necessidade de melhor compreensão desses processos e fenômenos, assim como as repercussões nas vazões dos rios para efeitos de planejamento do uso dos recursos hídricos no semiárido.

Essa região de clima seco já está sendo utilizada além de sua capacidade, o que implica em maior vulnerabilidade às mudanças do clima, que também corroboram as forças já existentes para provocar a desertificação.

Haverá uma maior variância, com as mudanças climáticas, nas séries hidrológicas. Isso irá implicar em uma infraestrutura muito mais onerosa e resistente à mudança para fazer frente a tal variabilidade.

A gestão da água para o abastecimento humano, principalmente o difuso, está baseado na gestão de reservatórios, que terá seu sistema de abastecimento afetado pelas mudanças climáticas, ou mesmo pelo aquecimento global, e suas consequências na variabilidade do clima.

Há necessidade de pesquisa inovadora em processos hidrológicos e suas relações com os demais processos ambientais. Esses temas trazem implicações para as políticas públicas de desenvolvimento do semiárido. Assim, é necessário reforçar políticas de enfrentamento da variabilidade climática e integrar políticas de desenvolvimento sustentável.

Para saber mais

ANDRADE, Gilberto Osório de. Alguns aspectos do quadro natural do Nordeste. Recife: SUDENE, 1977. Estudos Regionais, 2.

FLANNERY, Tim. Os senhores do clima: como o homem está alterando as condições climáticas e o que isso significa para o futuro do planeta. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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Edneida Rabêlo Cavalcanti
Geógrafa e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil (Tecnologia Ambiental e Recursos Hídricos) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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