ISSN 2179-1287
Número 16 | mai / jun / jul / ago 2015

O Ensino Religioso na Base Nacional Comum Curricular: um novo horizonte para uma antiga disciplina

Elisa Rodrigues

Em função da chamada pública para discussão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), cujo conteúdo corresponde à meta n. 7, Estratégia 7.1, do Plano Nacional de Educação (PNE), muitas universidades e escolas públicas têm realizado debates sugeridos pelo Ministério da Educação, a fim de verificar se a proposta disponível na Web atende às demandas, necessidades e objetivos que se vislumbram para a educação em nível nacional. Tais debates ocorrem devido à relevância do tema e demandam, entre outras intenções, analisar possíveis avanços no que tange à nova BNCC e suas contribuições dispostas ao longo do documento, disponível no endereço http://basenacionalcomum.mec.gov.br/.

No que tange a esse documento, entre as propostas que exigem reflexão encontra-se o encaminhamento concedido ao componente curricular Ensino Religioso. Esse componente é alvo de controvérsias que se arrastam há décadas no Brasil, basicamente, em função da não regulação quanto ao que seriam seus conteúdos fundamentais e quais seriam as metodologias mais adequadas de ensino. Soma-se a esse conjunto de incertezas, o fato de que historicamente a tematização da religião nos sistemas de educação brasileiros foi vinculada à noção de educação religiosa, predominantemente, católica, catequizadora e proselitista. Os marcos da emancipação dessa disciplina, alçada à qualidade de componente curricular, começaram a se forjar nos anos 1990 e ganharam mais força ao logo dos anos 2000. Prova disso é que passou a ser considerada Área de Conhecimento, ao lado de:

  1. Linguagens (Língua Portuguesa, Língua Materna, para populações indígenas, Língua Estrangeira moderna, Arte e Educação Física);
  2. Matemática;
  3. Ciências da Natureza;
  4. Ciências Humanas (História e Geografia)
  5. Ensino Religioso

O reconhecimento do Ensino Religioso como Área de Conhecimento se, por um lado, pode ser concebido como resultado de pressões de agentes religiosos (principalmente, lideranças religiosas católicas), por outro, analisado sob um ponto de vista mais compreensivo, pode indicar que o tema religião é caro para a história da formação do Estado brasileiro, ao ponto de, mesmo sendo laico, o Estado não desvencilhar-se dele. Essa segunda justificativa parece-me mais produtiva, se defendemos conceder ao Ensino Religioso, de fato, o caráter de componente curricular. Isto porque a qualidade de componente curricular pressupõe a religião como objeto sobre o qual se pode “saber”, isto é, adquirir conhecimento. Neste sentido, seria acertado o entendimento de que saber sobre religião ou saber sobre o fenômeno religioso, especificamente, como o conhecemos no contexto brasileiro tem a finalidade racional de oportunizar aos educandos um tipo de conhecimento que contribuirá para a sua formação como cidadão pleno e crítico.

O Departamento de Ciência da Religião da UFJF, alocado em seu Instituto de Ciências Humanas oferece uma Licenciatura em Ciência da Religião, bem como uma Especialização e os programas de mestrado e doutorado nessa mesma área. A trajetória de pouco mais de 40 anos desse departamento é reconhecida no território nacional em função de seu pioneirismo e excelência nos estudos de religião. Nestes cursos, cuja vocação principal é o estudo da religião, enfatiza-se a formação de pesquisadores e de professores, pois entendemos que a religião é matéria relevante, na medida em que representa uma das dimensões que constituem a vida na sua face social, cultural e econômica do ser humano em sociedade. Mais do que isso, entendemos que do ponto de vista da história material tanto quanto da construção de identidades, a religião é um poderoso discurso norteador de práticas que se estendem para além dos limites da vida privada e chegam ao âmbito da esfera pública, na forma de regras de condutas, de direcionamentos para a vida prática, de princípios éticos e valores morais sobre os quais uma parcela significativa da população brasileira assenta suas ações e relações sociais. Para muitas delas, a religião é força que as mobiliza.

A presença do tema religioso na BNCC, portanto, se justifica na medida em que visa construir um tipo de conhecimento sobre as modalidades de religião que constituem o campo religioso brasileiro e que contribua para a compreensão desse fato histórico, social e cultural: o fenômeno religioso. Deste modo, entendemos que o que se está proporcionando (ou deveríamos proporcionar) aos jovens educandos que debatem sobre religião na escola pública e laica é um conjunto de instrumentos que os habilitarão a pensar autonomamente sobre o tema religioso, discernindo a respeito das diferentes vertentes religiosas (suas teologias e práticas) e elaborando suas conclusões de modo crítico, como é esperado de um cidadão pleno. Sabe-se que o processo de ensino-aprendizagem desenvolve-se por meio de uma sequencia gradual de obtenção de conhecimentos, que gradualmente vai se construindo por meio de aquisições e rupturas. Construção e desconstrução de conhecimentos que têm início desde a primeira infância. E se dentre as qualidades desejáveis para um indivíduo espera-se o respeito pelo outro, a solidariedade e a capacidade de coexistência, a despeito das possíveis diferenças culturais, de gênero, de etnia, de religião, geracionais e de classe, o Ensino Religioso apresenta-se como um das matérias básicas ao Ensino Fundamental, do 1º ao 9º ano, em função:

  1. do potencial que possui para apresentação das diferentes religiões e religiosidades presentes nas cinco regiões que compõem o mapa nacional;
  2. da especificidade com que dedica-se à compreensão da linguagem religiosa (mitos, símbolos, emblemas, imagens);
  3. do tempo que empenha para o entendimento das práticas religiosas (ritos, celebrações, festividades, calendários);
  4. do modo como vincula as diferentes religiões aos seus grupos de origem, a fim de explicitar o significado que assumem para aqueles que as praticam (do ponto de vista da função e do sentido).

Para esse tipo de abordagem da religião que se detém no que é específico do fato religioso, sem declinar da historicidade da religião, da sua potência como discurso ideológico, mas concomitantemente reconhecendo o seu caráter de narrativa de sentido, o componente curricular Ensino Religioso se apresenta como lugar mais apropriado para a promoção de conhecimento sobre as religiões que possibilita a compreensão de suas teologias, práticas e propostas para a sociedade. Não se prescinde aqui da relação entre religião e os processos históricos que levaram, tanto o campo acadêmico, quanto o campo político brasileiro, à construção de dicotomias como: Estado e Igreja; Ciência e Religião; Razão e Fé. Contudo, pergunta-se se tais dicotomias que podem ser paralisantes, na medida em que encerram o fato religioso em perspectivas que, apressadamente, intentam defini-lo em termos de projeção, alienação, discurso moral, entre outros, poderiam ser problematizadas em favor de um entendimento da religião, que indicasse o movimento da religião frente à Ciência, à Razão e ao Estado?

Neste sentido, dos anos iniciais ao segundo ciclo do ensino fundamental, entendemos que o Ensino Religioso pode e deve integrar a BNCC de acordo com dois eixos principais:

1) Tradições religiosas – O conhecimento sobre as religiões ou o conhecimento religioso

2) Práticas – O conhecimento das religiões e das suas práticas religiosas

Quanto ao primeiro eixo, propomos como conteúdo básico o conhecimento sobre a história de cada modalidade religiosa, por meio de suas narrativas fundantes (mitos) de origem para o cosmos e para a humanidade. Tais narrativas, na forma oral e escrita, indicam o saber relativo a cada religião no que diz respeito a temas como ser-humano, relação com o mundo (imanente e transcendente), divisão do trabalho, gênero, núcleo familiar, sociedade, concepção de vida e morte, dentre outros. Para o desenvolvimento desse eixo, importa “saber sobre” e “compreender” as razões de suas liturgias e códigos de usos e costumes (suas regras). Em síntese, nesse eixo seriam contemplados: os mitos e as ideias religiosas e o conteúdo ético e moral subjacente a essas narrativas religiosas (valores e limites éticos), sempre tendo como perspectiva a forma como as religiões se relacionam com suas civilizações de origem tecendo filosofias, ideologias e sistema doutrinários.

Esse primeiro eixo tem continuidade no segundo, cuja matéria principal envolveria a linguagem da religião (suas imagens, símbolos e metáforas), e a sua materialidade expressa por meio dos seus objetos como vestimentas, comidas, objetos de culto e seus produtos, como música, dança, arquitetura (espaços religiosos considerados sagrados) e literatura.

Importante ressaltar, deste modo, que entendemos que o conteúdo básico do componente curricular Ensino Religioso deve estar atrelado às ideias e às práticas religiosas e, pensado em conformidade com as especificidades peculiares a cada faixa etária em suas séries concernentes. Nosso entendimento é que uma abordagem fenomenológica da religião em diálogo com a história comparada das religiões, a filosofia da religião e a antropologia, entre outras áreas do conhecimento alocadas nas ciências que compõem o campo das Humanidades, é suposto como meio de assegurar aos jovens educandos e cidadãos, uma formação crítica para autonomia pela promoção do conhecimento reflexivo, conforme as garantias expressas na Constituição do Brasil (1988).

Assim, no componente curricular Ensino Religioso, os conteúdos relativos às tradições religiosas (presentes nas realidades das diferentes regiões do território nacional) e suas práticas receberiam um tratamento que buscaria desvelar a religião a partir dela mesma, entendendo-as como dimensão que, para algumas pessoas, toca-as incondicionalmente. Nesses casos, ter fé corresponderia a deixar-se mover por algo que lhe mobiliza, de uma profunda seriedade que somente pode ser dessa maneira significada por seres humanos. Nisso se revela um dos traços que a constitui: a religião diz respeito à condição humana de pensar sobre si mesma.

Vale dizer, então, que do ponto de vista epistemológico não se justificaria um eixo destinado ao “Ser Humano”, como proposto no atual documento norteador para o componente curricular Ensino Religioso na BNCC. Isto porque tanto o tema “valores e limites éticos”, bem como “direitos humanos” e “dignidade humana”, segundo entendemos, constituem temas transversais a todos os componentes curriculares. É, portanto, matéria de responsabilidade social sobre a qual não apenas o Ensino Religioso deve versar, mas também disciplinas como Filosofia, História, Português e todas as outras que compõem os projetos políticos-pedagógicos que norteiam, por fim, as unidades escolares das redes estaduais e municipais.

Embora, historicamente, o Ensino Religioso tenha assumido a função de trabalhar com tais temas em função de sua afinidade com as pautas relativas aos Direitos Humanos, entendemos que urge a necessidade de especificarmos o conteúdo relativo a esse componente curricular de forma propositiva, como em outras áreas do conhecimento isso é estabelecido. Neste sentido, considerar como um eixo norteador específico do Ensino Religioso os conteúdos citados acima, a nosso ver, poderia contribuir para a reificação de práticas doutrinadoras e catequéticas na condução do Ensino Religioso em sala de aula. Deforma alguma, essas práticas podem ser justificadas, sob pena de se infringir direitos básicos legados aos cidadãos brasileiros, como a liberdade religiosa e o direito de exercício da sua crença.

Na qualidade de laica, a escola deveria atinar para o Ensino Religioso como oportunidade de promoção do conhecimento sobre as diferentes modalidades religiosas que compõem o cenário nacional, contribuindo para a formação do nosso Estado e da nossa sociedade. No escopo de conteúdos relativos ao Ensino Religioso, os temas “valores e limites éticos”, “direitos humanos” e “dignidade humana” seriam parte do programa curricular como igualmente deveriam constar como parte dos currículos de outras disciplinas, principalmente, do campo das Humanidades. O que é específico do Ensino Religioso, isto é, o conhecimento sobre as religiões ou o conhecimento religioso e, o conhecimento das práticas religiosas possui potencial para por si mesmos conduzir os educandos no longo processo de ensino-aprendizagem a identificar e compreender que as religiões também são:

  • Expressão de sonhos e esperanças da humanidade, portanto, fruto do desejo.
  • Possibilidades de transcender as diversas situações e condições contextuais socioculturais.
  • Meios de superar situações de conflito como aquelas constituídas por intolerância e discriminação.

Desta forma, o que propomos é a possibilidade de um Ensino Religioso que componha o Campo das Humanidades e ao mesmo tempo caracterize-se como humanista, em função de uma abordagem que priorize o religioso na relação com as outras esferas sociais.

A ideia, portanto, é que mesmo sendo esse componente curricular fruto de antigas discussões que historicamente foram protagonizadas por forças políticas em oposição, espera-se que na atual BNCC, o Ensino Religioso assuma novos contornos, tomando para si a tarefa de oferecer aos jovens cidadãos saberes sobre as religiões que lhes permitam elaborar suas opiniões (favoráveis ou não às religiões), forjadas sobre a base do respeito. A expectativa é que tal componente curricular contribua, dentre outros motivos, para a diminuição de crimes de intolerância e violência religiosa, que atualmente povoam os meios de comunicação com cenas execráveis de ignorância.

Para saber mais

Elisa Rodrigues é Professora do Departamento de Ciência da Religião/Instituto de Ciências Humanas/UFJF.

Histórico do Ensino Religioso entre os anos 1990 e 2000, no capítulo intitulado Formação em Ensino Religioso do livro Dilemas e desafios (In JUNQUEIRA, Sérgio R. A. Ensino Religioso no Brasil. Florianópolis: Insular, 2015. p. 121-122).

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. RESOLUÇÃO Nº 7. In Diário Oficial da União, Brasília, de 14 de dezembro de 2010. Seção 1, p. 34

 


Elisa Rodrigues
é professora do Departamento de Ciência da Religião/Instituto de Ciências Humanas/UFJF.

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