Arnaldo Érico Huff Júnior É a primeira vez que o ensino religioso entra em pauta em uma proposta educacional como a da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Desde as discussões da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDBEN), nos anos 90, os rumos do ensino religioso vinham sendo delegados pelo Estado aos sistemas de ensino. Hoje, a proposta que se discute a partir do texto já existente da BNCC é fundamental para a melhoria das práticas do ensino religioso nas escolas brasileiras. A relação entre Estado, religião e educação tem sido motivo de análise e de debates acalorados no Brasil nestes últimos anos de democracia. As questões centrais dividem os interessados em dois setores. De um lado, estão aqueles contrários à oferta do ensino religioso na escola pública, que, embasados em ideais modernos e secularizantes, sustentam geralmente a laicidade do Estado e o entendimento de que religião é um assunto de caráter íntimo e/ou familiar: “religião se aprende em casa” e não deve haver catequese na escola. De outro lado, ficam os que são favoráveis à oferta da disciplina na educação escolar pública, a partir de pontos de vista variados, que podem ir desde o argumento de que a religião é importante para o bom comportamento, até a defesa do ensino religioso para a tolerância e a diversidade. Na confusão que se instaura entre os dois setores da sociedade, a Igreja Católica aparece como a grande concorrente do Estado, sob a suspeita de estar sempre pronta a estender seus tentáculos ao campo educacional. A cultura universitária, por sua vez, à medida que incide sobre o ambiente escolar, revela uma cisão semelhante, uma vez que reproduz, eventualmente, de modo acrítico, ideais ancorados em pares opostos, como Igreja versus Estado, Religião versus Ciência, Fé versus Razão, etc. Nesse ambiente, é invariavelmente grande a influência de ideais iluministas e de certo laicismo, de inspiração principalmente francesa, não raramente, antirreligiosos. O quadro é basicamente caricato. Posto nestes termos, a divisão torna-se altamente paralisante e improdutiva, impedindo o avanço das discussões e da própria educação pública nacional. O texto preliminar da BNCC, por sua vez, reproduz tais dualismos ideais no que concerne à abordagem do ensino religioso, mas que, para ser efetivo, deve superá-los. O caminho é o da compreensão e da solidificação do ensino religioso no contexto das ciências humanas. A ideia de “humanidades” seria, todavia, ainda melhor, à medida que inclui também o campo das artes e das letras, com as quais a religião guarda relações fundamentais. Ora, as propostas em questão para o ensino religioso não pretendem representar interesses meramente eclesiásticos, muito menos ratificar a catequese na sala de aula. Esse é o ponto de partida e o grande facilitador do debate. Há, porém, ainda um caminho considerável a se percorrer para que o ensino religioso, de fato, se constitua autonomamente como disciplina escolar. Nesse sentido, o crescente consenso de que a ciência da religião é a área de produção do conhecimento a ser traduzido pelo ensino religioso para a sala de aula e, portanto, de que a ciência da religião é a “casa” do ensino religioso na universidade, pode trazer nova luz à questão e colaborará na solução de problemas centrais implicados no debate. Vamos ao texto preliminar da BNCC. O ensino religioso aparece primeiramente na apresentação das ciências humanas: A área de Ciências Humanas, na educação escolar, é constituída pelos seguintes componentes curriculares obrigatórios: História e Geografia, desde o Ensino Fundamental até o Ensino Médio, e Sociologia e Filosofia, exclusivamente no Ensino Médio. O Ensino Religioso, dada sua proximidade de estudos com a área de Ciências Humanas, é a ela integrado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), realçando seu caráter histórico e filosófico. A oferta do Ensino Religioso é obrigatória no Ensino Fundamental, embora a sua matrícula seja facultativa. Aqui já estão postos problemas fundamentais. Faculta-se a presença do ensino religioso, admitida sua “proximidade” com área, desde que este tenha caráter histórico e filosófico. O que isso significa? Nas entrelinhas, que não deve ser catequético ou doutrinador, ou seja, que trate das religiões em seus desenvolvimentos históricos e da religião enquanto problema filosófico, sem encampar tipo algum de divulgação religiosa. Quer-se com isso evitar erros históricos que fizeram do ensino religioso na escola pública um espaço de ensino de uma religião e que implicavam em confusões entre os papéis do Estado e da Igreja. O ensino religioso é, nesse sentido, uma pedra no sapato. Causa certo mal-estar. A oferta obrigatória com matrícula facultativa é sintoma disso, considerando que nenhuma outra disciplina escolar tem tratamento semelhante. A solução, como se vê no texto, indica que prevaleça a análise acadêmica da religião, enquanto fato e problema. Espera-se com isso que o ensino religioso contribua “para o estudo da diversidade cultural religiosa na perspectiva dos direitos humanos”, como se afirma no próprio texto da BNCC. O texto referente ao ensino religioso como componente curricular, por sua vez, revela um tom semelhante. No presente documento, o Ensino Religioso, de caráter notadamente não confessional, é apresentado junto à área das Ciências Humanas, o que, de maneira alguma, compromete sua identidade pedagógica como componente curricular da Educação Básica. Essa integração se deve à proximidade e às conexões existentes com as especificidades da História, Geografia, Sociologia e Filosofia, de modo a estabelecer e ampliar diálogos e abordagens teórico-metodológicas que transcendam as fronteiras disciplinares. Ao passo que se aceita o vínculo do ensino religioso com as ciências humanas, seus objetivos são assim elencados no texto: Na educação básica, o ER não confessional assume a responsabilidade de oportunizar o acesso aos saberes e aos conhecimentos produzidos pelas diferentes culturas, cosmovisões e tradições religiosas, sem proselitismo. Os conhecimentos religiosos fundamentam, articulam e expressam maneiras próprias de como cada pessoa ou grupo capta, interpreta, aprende e elucida os acontecimentos da vida. Embasam crenças, comportamentos, atitudes, valores, símbolos, significados e referenciais utilizados para realizar escolhas e dar sentido à vida. Ou seja, demanda-se que o ensino religioso seja acadêmico, e não eclesiástico ou catequético. O que sem dúvida é o horizonte adequado. O ensino religioso mostra-se, por sua vez, pronto a aceitar o desafio. Percebe inclusive com clareza que religião tem a ver com escolhas, com visões de mundo e com a questão do sentido da vida. E isso de modo não confessional e não proselitista. Para que se chegue lá, todavia, o ensino religioso precisará enfrentar com vigor a construção de seu objeto, assim como deverá trazer à baila seus problemas de ordem epistemológica e relativos à identidade de seus profissionais. Assim também, será necessária maior clareza acerca do que se quer com o ensino religioso, no sentido de saber em que se acredita quando se sustenta a importância do ensino religioso. Dizer-se não confessional e não proselitista não significa de modo algum ser neutro. Um dos problemas a vencer, diz respeito à dependência por parte do ensino religioso e da ciência da religião em relação às demais disciplinas das ciências humanas. Ao vislumbrar os processos interdisciplinares mencionados, o texto comporta a fragilidade epistemológica do ensino religioso e, em certa medida, da ciência da religião. Ora, história, filosofia, sociologia e geografia têm suas próprias abordagens e compreensões da religião. Por um lado, há algo de específico no estudo da religião que tais disciplinas invariavelmente não acessam. Suas questões são geralmente de outra ordem; trata-se de estudar a religião para chegar à sociedade, à cultura, à política, à economia, à moral, etc. Por outro lado, o fenômeno religioso em suas mais diversas formas não é foco específico do esforço de nenhuma dessas disciplinas. Daí também que os licenciados nessas diferentes áreas não estejam automaticamente preparados para o ensino religioso. Este requer uma formação diferenciada, com foco específico em religião. O ensino religioso e a ciência da religião devem, nessa perspectiva, iniciar uma compreensão integral da religião, ou seja, de todas as religiões e da religião toda. Trata-se de ter em vista uma hermenêutica total, como queria o filósofo Mircea Eliade. O conceito de religião com que operarmos afetará, nesse sentido, diretamente as propostas para o ensino religioso. A tendência moderna e secularizante de compreensão da religião a percebe como uma das muitas esferas da vida, assim como as demais disciplinas escolares. Religião é algo que o indivíduo põe em ação quando precisa. Cada um tem sua vida religiosa a seu próprio feitio, em meio às demais esferas da vida: a política, a economia, o lazer, a arte, a família, etc. Para desenvolverem sua compreensão totalizante da religião, à ciência da religião e ao ensino religioso não é suficiente partir de tal entendimento. É preciso um conceito amplo e forte. Autores já há longo tempo estudados na ciência da religião indicam caminhos possíveis para isso. O teólogo e filósofo Paul Tillich, por exemplo, define a religião como uma preocupação última, suprema (ultimate concern), aquilo que toca e move de forma incondicional. É a dimensão de profundidade presente em todo ato humano criativo, em cada atividade do espírito humano. A fé, nessa perspectiva, não pode ser menos que o agir da pessoa inteira. Se a vida tem alguma seriedade profunda, esse é o terreno da religião, as entranhas do humano. Daí a possibilidade de Tillich afirmar que a religião é a substância da cultura e a cultura, a forma da religião. O conhecimento, a economia, a brincadeira, entre tantas outras esferas, seriam formas culturais sustentadas por sua própria dimensão de profundidade, ou seja, a religião, que indica seu fundamento e sua possibilidade. Numa mesma direção, Eliade assume que o ser humano é homo religiosus e que para ele “o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência”. Quando falamos, portanto, da religião, do incondicional e do sagrado, referimo-nos não a um ser ou um ente, mas a uma qualidade da experiência religiosa humana. Também não a uma dimensão da vida entre outras tantas, mas ao próprio fundamento do ser. Nesse sentido, o homo religiosus não está restrito aos tempos antigos ou às sociedades arcaicas. Antes disso, Eliade pretende indicar com essa expressão um traço constitutivo do gênero humano, assim como quando falamos sobre um homo sapiens, um homo oeconomicus, um homo ludens, etc. Um traço, todavia, que antecede e fundamenta todos os demais. Note-se que se trata de uma compreensão que antecede e transcende em muito as instituições religiosas às quais nos possamos filiar. Trata-se da contingência humana e da necessidade de produção de sentido profundo para a vida. Nessa perspectiva, quando os homens tiram “Deus” de seu horizonte, neste mesmo movimento algo incondicional, algo de sagrado, de religioso estará em processo, uma vez que a própria derrubada de velhos ídolos consiste na busca e na construção de novos sentidos, rumo a uma nova preocupação. Em movimento análogo, o pesquisador Ninian Smart entende a atividade principal do cientista da religião como sendo a “análise de visões de mundo”, dentre as quais elenca o humanismo e o marxismo, por exemplo, à medida que comportam entendimentos acerca da existência humana, ideais e esperanças relativas a seu futuro. Religião aqui é, como se vê, coisa de gente. Diz respeito à vida e, por isso mesmo, pertence ao interesse das ciências humanas e das humanidades. Um conceito de religião construído nesse caminho permite a superação dos dualismos paralisantes acima referidos. A ideia é simples: não se trata de catequese, nem de defender a laicidade do Estado, mas antes de sublinhar um traço constitutivo da experiência humana, que chamamos de religião, e suas mais variadas expressões ao longo da história. Nesse sentido, a humanidade tem um saber religioso acumulado, ao qual os alunos têm direito de acesso. A escola poderá facilitar o processo de aprendizagem da dimensão religiosa da vida através do ensino religioso. No trecho citado acima, que trata do “componente curricular ensino religioso”, há o que poderíamos chamar de “ato falho”. Afirma-se que a presença do ensino religioso no contexto das ciências humanas não compromete sua identidade pedagógica. Por que haveria de comprometer? Que outro tipo de identidade seria possível se não a acadêmico-científica? A religiosa confessional? O ensino religioso entendido como ciência humana em relação estreita com a ciência da religião constitui, na verdade, o caminho mais promissor para as demandas identitárias e epistemológicas dessa área em reconstrução. O que se vislumbra é que, nesse caminho, além de lidar com a importante questão da intolerância religiosa, a comunidade escolar, no contato com as diversas simbologias religiosas mediadas pelo ensino religioso, poderá criativamente vivenciar experiências e expressões de sentido profundo construídas para a vida humana, assim como vislumbrar imaginativamente novas formas de convivência e de estar no mundo. Para saber mais ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Brasiliense, 1981. ______. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Paulinas, 1984. BRASIL. Ministério da Educação. BNCC, Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>. Acesso em: 7 dez 2015. ELIADE, Mircea. Origens: história e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1989. ______. O sagrado e o profano, a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FONAPER, Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso. Parâmetros Curriculares Nacionais, Ensino Religioso. 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é professor de ciência da religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em ciência da religião pela mesma universidade. Seus estudos têm privilegiado os temas do protestantismo, da teoria da religião e as relações entre religião e arte.