Alice Casimiro Lopes Ana de Oliveira A ideia de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não é nova. É uma das tantas tradições que contribuem para configurar políticas orientadas por diferentes perspectivas curriculares. As tradições nos ajudam a compreender a constituição de diferentes sujeitos que, em meio às disputas por significação que caracterizam as políticas, colocam em circulação determinados sentidos. Ainda assim, propomos colocá-las sob suspeita. Não para, apenas, nos opor a elas, mas pare operar na desconstrução de suas bases. Isso porque defendemos que tais tradições são produzidas por diferentes articulações entre demandas de comunidades disciplinares, das equipes técnicas de governo, do empresariado, partidos políticos, associações, instituições e movimentos sociais os mais diversos. As tradições são, portanto, dependentes dessas disputas e não têm um caráter racional ou determinante capaz de, por si só, orientarem as políticas curriculares no sentido da consecução de certas finalidades educacionais. Nesse movimento, pelo qual buscamos responder à pergunta que serve de título a este texto, nos colocamos ao lado dos que, no campo curricular nacional e internacional, se opõem a ideia do estabelecimento de uma base nacional curricular comum. Nossa resposta aqui consiste em apresentar outras possibilidades de leitura dessa tradição – a tradição em defesa de uma base comum curricular. Para isso, buscamos desconstruir argumentos apresentados por aqueles que entendem a BNCC por meio de uma relação lógica, clara, objetivada e incontestável: os mesmos que tentam sedimentar a ideia de base comum curricular como garantia da qualidade de ensino e como estratégia para controlar o que supõem ser a forma mais correta de currículo e ensino. Tensionamos, inicialmente, a estratégia apresentada no Portal do MEC: abertura à consulta sobre o documento preliminar, visando a um consenso sobre a BNCC em junho de 2016. Poderíamos apontar que a metodologia a ser usada pelas equipes técnicas do MEC não é suficientemente clara para que possa ser avaliada. Salientamos, contudo, que mais problemática parece ser a perspectiva que se apoia em uma pretensão de produzir um suposto consenso, como se, a partir daí ficasse encerrado o debate sobre a BNCC, encerrada a política de currículo. Em nossa concepção, o antagonismo, e o conflito a ele associado, é a própria razão de ser da política e isso indica a impossibilidade do consenso definitivo e de se estabelecer uma única leitura, seja ela qual for. Política remete muito mais a produção de sentidos e movimentos contextuais de interpretação do que a definição de universalismos categóricos (como o pretendido com o estabelecimento de uma base nacional curricular). Entendemos assim que não se trata de responder ao que está sendo proposto ou mesmo encaminhar posições complementares à proposta preliminar de BNCC. Cabe propor outras perguntas, outros processos, outras formas de fazer/pensar a política de currículo. Questionamos mais diretamente a pretensão de uniformização curricular e de valorização da testagem em larga escala como controle do que se aprende. Colocamos sob suspeita essas marcas tão cristalizadas. Um dos argumentos utilizados em defesa do estabelecimento da BNCC ancora-se na necessidade de atendimento ao que se expressa na Constituição de 1988 (artigo 210), na LDB (artigo 3º) e no Plano Nacional de Educação (a meta 2). Esses dispositivos legais, entretanto, definem apenas metas: a busca pela garantia do direito ao aprendizado. Caso a garantia desse direito seja construída pela via da uniformização curricular ou da tentativa de controle do que é aprendido, pode vir apenas a minimizar as possibilidades democráticas dessa política. Nosso questionamento em relação à uniformização curricular pretendida na política de estabelecimento da BNCC está embasado na ideia de que não é possível nem desejável uniformizar os saberes a serem aprendidos e/ou ensinados. A tentativa de seleção dos conhecimentos proposta pela BNCC remete ao registro do conhecimento/saber como um objeto que pode ser transmitido ou distribuído igualmente a todos. Desconsidera que conhecimento não é um dado, uma informação, mas um jogo incessante de criação. O currículo na escola, como produção entre sujeitos em dadas relações de poder contextuais, leva à produção de saberes/conhecimentos. Sujeitos diferentes, em contextos diferentes, (re)interpretam, (re)significam os conhecimentos/saberes de formas diferentes, em função de existências diferentes. Outro dispositivo ao qual o estabelecimento de uma base nacional lança mão é o de valorização da testagem em larga escala como controle do que se aprende. Prevalece a ideia de que, uma vez feita a seleção dos conhecimentos a serem ensinados, é possível verificar, via avaliações centralizadas, o que efetivamente foi ensinado e aprendido. Espera-se, portanto, que a seleção, por si só, seja capaz de dar conta do planejamento curricular e orientar os descritores da avaliação. Entre os que defendem a BNCC, há um silenciamento sobre as discussões nacionais e internacionais que questionam a utilização dos testes de padronização e que indicam seus efeitos negativos em relação à qualidade de ensino nos EUA, na África do Sul, na Suécia e Finlândia e outros países, alguns deles citados, pelos defensores da BNCC, como modelos a serem copiados. Acrescentamos a essa crítica o fato de que esses processos de controle transformam o direito de aprender em dever de aprender determinados saberes de determinadas formas, desconsiderando as múltiplas diferenças produzidas no processo curricular. Também vale a pena pensarmos sobre os recursos financeiros que são disponibilizados para a seleção e controle dos conhecimentos a serem ensinados. São feitos investimentos altos para controlar o que não tem controle – toda proposta sempre será reinterpretada de formas imprevistas. E, mais grave ainda, altos investimentos são feitos na tentativa de bloquear o que de mais importante se pode esperar da educação nas sociedades democráticas: a possibilidade do diferir, a produção da diferença. Entendemos que os investimentos financeiros subsidiados por acordos internacionais e nacionais para viabilizar essa estratégia seriam mais produtivos se orientados para outras ações curriculares. Por exemplo, o apoio para que diferentes estados e municípios fossem instados a produzir propostas curriculares locais. Por fim, queremos colocar sob suspeita a ideia negativa que vem sendo utilizada para justificar o estabelecimento de uma base: a das escolas como o lugar onde não se aprende, a dos professores/as como profissionais que precisam ter um manual detalhado do que ensinar. “Hoje os alunos não aprendem os conhecimentos essenciais que precisam aprender a cada ano” é uma declaração que já virou clichê, responsabilizando professores, professoras e gestores nas escolas pelo que se supõe ser o fracasso da escola brasileira (principalmente a escola pública). Tal afirmação desconsidera múltiplas experiências exitosas nas escolas e leva os professores/as a incorporarem apenas a imagem do fracasso, da falta, da impotência. Esses profissionais são responsabilizados pelo não aprendizado dos alunos e alunas mesmo quando as dificuldades de realização das atividades escolares passam por questões fora do âmbito pedagógico: violência nas escolas, baixos salários, desemprego dos pais, falta de condições de vida da população de uma maneira geral. Em síntese, a proposta de uma base é a tentativa de se frear o fluxo de significação produzindo um suposto consenso em torno de uma única possibilidade de conhecimento a ser medida nos diferentes exames. Uma vez feita essa escolha, se supõe que a política cessa, que cabe apenas ensinar e implementar o que este consenso produziu. Afirmamos, em posição contrária a essa concepção, que a política (de currículo) não cessa nunca, os conflitos em torno das diferentes interpretações sobre o conhecimento permanecem. Buscar garantir a possibilidade democrática de que todos aprendam não implica, ao nosso ver, tentar definir uniformemente o que todos devem aprender, na medida em que este todos não é um conjunto homogêneo, mas singularidades que, mesmo quando articuladas, sempre estão produzindo diferenças. A tentativa de controlar o modo de ser (e de viver) das futuras gerações normatizando o que devem aprender, que conhecimentos devem construir transforma o direito de aprender em dever de aprender um determinado conhecimento, transforma as múltiplas possibilidades de ser em um único dever ser. Parece-nos mais democrático e produtivo investir para que várias possibilidades de ser e de conhecer sejam construídas. E isso pode ser feito por meio do investimento na garantia das condições para que os alunos e alunas estudem e para que professores e professoras exerçam o seu trabalho de ensinar. De formas múltiplas, diferentes, contextualmente construídas, e, por isso mesmo, imprevisíveis. Mas nem por isso menos importantes e potentes para produzir sujeitos educados.

é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é professora associada da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Procientista nesta mesma instituição.

é doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROEd/UERJ) e professora de História do Colégio Pedro II-RJ.