Carlos Cury A base nacional comum voltada para o currículo é uma das dimensões que a Constituição Federal (CF) prevê em seu artigo 22, inciso XXIV, ou seja, a competência privativa à União de estabelecer as “diretrizes e bases da educação nacional”. O plural bases indica que elas compreendem muitas dimensões, uma das quais encontra-se no artigo 210, da Constituição, o qual determina que “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Após a Emenda Constitucional nº 59, de 2009, que tornou a educação básica, a partir da pré-escola até o ensino médio, como faixa obrigatória para as pessoas de 4 a 17 anos, não é de todo arbitrário estender a fixação de conteúdos mínimos para esta ampliação da gratuidade e da obrigatoriedade escolares. Estes conteúdos, pela conjugação dos artigos, devem ser fixados dentro de uma dialética que compõe base, base nacional e base comum de modo que a formação daí resultante conduza ao que prevê o artigo 205 da mesma Constituição: “o pleno desenvolvimento da pessoa”. E para alcançá-lo, a educação é definida como “direito do cidadão e dever do Estado”. Portanto, a base comum nacional, que abrange os conteúdos mínimos, incorpora o direito e o dever. E esse desenvolvimento da pessoa não poderia se realizar de modo pleno, especialmente na educação básica, sem o concurso de várias outras mediações entre as quais a gratuidade, a obrigatoriedade, o financiamento, o papel do Estado e a valorização dos docentes. Tais mediações concorrem para o preenchimento das finalidades da instituição escolar: o desenvolvimento efetivo da capacidade cognitiva, marca registrada do homem, e a incorporação de valores ligados à cidadania e aos direitos humanos. Importa registrar que a cidadania é um dos fundamentos de nossa Constituição, como consta em seu artigo 1°, inciso II. A cidadania é o comum que, nessa mediação, se identifica com o nacional. O comum é o que pertence a um conjunto de pessoas que, no caso, é a nação brasileira. O oposto ao comum é o particular ou específico que, em nosso caso, de uma República Federativa, preserva valores regionais e acolhe valores culturais. Portanto, no caso dos conteúdos mínimos da educação obrigatória há de haver o que é de pertencimento comum, nacional, próprio da cidadania e o que é específico do campo federativo. O termo nacional, do verbo latino nasci (nascer, originar-se) quer dizer simplesmente nascido em um lugar. De modo mais amplo, nacional indica as pessoas nascidas e as coisas produzidas em uma nação, dentro de cujo território se erigiu um Estado, e em suas fronteiras constituiu-se uma sociedade que possui de modo conjunto um idioma, certas tradições e hábitos comuns sob uma organização político-administrativa própria. Mais profundamente o termo nacional (ou nação e até mesmo nacionalidade) quer dizer de um vínculo permanente, um pacto, que liga uma pessoa a uma nação em termos de grandes objetivos e finalidades pelos quais se dá a busca de um destino comum. E um dos patrimônios nacionais é a educação escolar em cujo interior se dará algo de comum a todos os brasileiros em termos de formação cognitiva e axiológica. Observe-se o que dispõe o artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB): “a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurando-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. De modo constante, o termo educação básica, na LDB, se vê acompanhado, no conjunto dos artigos, do adjetivo comum. Tal é o caso, por exemplo, da “formação básica comum” dos conteúdos mínimos das três etapas do inciso IV, do art. 9º; da “formação comum” no art. 22; da “base nacional comum” nos artigos 26, 38 e 64; e a diretriz do respeito ao “bem comum” do art. 27. Assim, a educação básica tem por finalidade precípua e fundamental a formação de uma pessoa para múltiplos aspectos da vida social, dentre eles, a consciência de si como sujeito, a consciência do outro como igual e diferente tanto por meio do domínio de conhecimentos, com rigor científico, e o desenvolvimento de competências que incorporem um método permanente de aprendizagem e abertura para novas possibilidades. Por esses motivos, a educação escolar é direito do cidadão e dever do Estado. Como direito, ela significa um reconhecimento juridicamente protegido desses novos espaços e tempos e, assim, a assinalação de uma cidadania ansiosa por encontros e reencontros com uma democracia civil, social, política e cultural para todos. Para fazê-la direito de todos seria necessário que houvesse algo de comum ou universal. E dessa inspiração declarada e garantida na Constituição em capítulo voltado à educação é que essa é proclamada direito. Da educação espera-se a abertura, além de si, para outras dimensões da cidadania e da petição de novos direitos. Espera-se, também, expressão institucionalizada da educação básica, a transmissão de conhecimentos e competências para uma inserção consciente na vida profissional, pelo trabalho, e na vida social, pela ereção de novos padrões pelas quais se haveria de instituir, de modo organizado e sistemático, uma “vontade geral democrática” até então inexistente no país. Mercê da Emenda Constitucional nº 59, de 2009 e da lei nº 13.005, de 2014, especificamente a meta 2, estratégia 2.2, e a meta 3, estratégia 3.3, o Plano Nacional de Educação prevê a configuração, respectivamente, da base nacional comum curricular do ensino fundamental e do ensino médio. Esta base, conforme as estratégias 2.1 e 3.2, será articulada pelo MEC em conjunto com os entes federativos, sob a forma de direitos e objetivos de aprendizagem. Essa etapa está concluída, mas o processo não. Uma vez terminada a fase de consulta pública nacional, aberta aos interessados para que analisem o conteúdo desta etapa e façam propostas visando uma participação mais ampla da sociedade, cabe ao MEC organizar e sistematizar este conjunto e, fiel ao espírito da consulta, passar à próxima fase. De acordo com a lei, cabe ao Conselho Nacional de Educação (CNE) dar o acabamento final dentro de sua tradição de audiências públicas. A próxima etapa será o envio da proposta aperfeiçoada para o Conselho Nacional de Educação (CNE) a quem compete normatizar o processo até junho de 2016. O CNE, no exercício de suas atribuições legais, deve assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional. Portanto, mesmo que a etapa da consulta aberta haja terminado, ainda restam as audiências públicas que são um diferencial do atual Conselho. Órgão de articulação entre a sociedade política e a sociedade civil, O CNE responde por meio de suas Câmaras de Educação (Básica e Superior) à atribuição, posta no art. 9° da lei nº 4.024, de 1961, com a redação dada pela lei nº 9.131, de 1995, respectivamente: “deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto”; e “deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto, para os cursos de graduação”. Importa saber, enfim, que esse processo, mesmo referendado pelo Conselho Nacional de Educação, passa pelo caráter federativo do Brasil e pela autonomia pedagógica dos estabelecimentos escolares. A formação comum própria da educação básica encontra, no art. 26 da LDB, o palco onde os atores pedagógicos farão daquele estabelecimento um lugar de exercício da cidadania e um meio de progresso no trabalho e nos estudos: o caráter federativo da República Brasileira que é a síntese, na cidadania,“da União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito”, prevista no art. 1º da Constituição Federal. É o que está posto no artigo 26 da LDB: “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.” Os Estados e os Municípios, no âmbito de seus sistemas, deverão junto com a base comum complementá-la respeitando a diversidade regional. Esta é uma responsabilidade dos Conselhos de Educação destes sistemas os quais, simetricamente, ao processo de constituição de conhecimentos e valores da base comum, deverão abrir consulta pública antes de uma definição normativa. A unidade comum dos componentes curriculares se expressará por uma saturação histórica que tem a ver desde a contribuição das diferentes etnias no espaço nacional e nos espaços regionais e locais até a presença mundial do país. Estes objetivos não abrangem apenas componentes intelectuais, mas também estéticos (artes), corporais (educação física) e formação para os valores maiores da cidadania e dos direitos humanos. Finalmente, a autonomia dos projetos pedagógicos das escolas, ao materializar naquele estabelecimento os objetivos maiores da educação nacional, deverá fazê-lo à luz desta dialética entre unidade e multiplicidade, entre igualdade e diferença. Base comum e parte diversificada formam um todo no qual se dá uma interação ativa entre os componentes curriculares de uma proposta pedagógica. Nesse sentido, a base comum e a parte diversificada são faces da interdependência que vão do uno ao múltiplo e do múltiplo ao uno. Não há, pois, oposição entre eles e nem diferença substantiva entre ambos já que procedem de objetivos gerais e comuns postos na Constituição e na LDB. Logo, docentes, associações e organizações sociais podem e devem dar sua contribuição a este processo como um gesto de compromisso e de cidadania.

é mestre e doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e pela École des Hauts Études em Sciences Sociales (EHESS, França). Atualmente, é professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e membro do Conselho Superior da CAPES. Possui experiência na área de Direito à Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: lei de diretrizes e bases, política educacional, legislação educacional e educação de jovens e adultos.