ISSN 2179-1287
Número 16 | mai / jun / jul / ago 2015

Base Nacional Comum Curricular e o Ensino Religioso: potencialidades contemporâneas

Prof. Dr. Fabio Lanza

Prof. Me. Luís Gustavo Patrocino

Andressa Alves Silva Melo

 

Introdução

A relação entre educação e religião, no Brasil, esteve presente desde o período colonial, e, ao longo do processo histórico, o Ensino Religioso (ER),  consolidou-se devido a essa complexa relação. Na atualidade, o ER foi contemplado no campo legal por meio da Constituição Federal (CF) de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n° 9394, de 1996, que foi ratificada pela Lei nº 9475, de 1997, e novamente imposto pela Concordata Internacional Brasil/Vaticano, em 2010.  O artigo 33 da LDB diz que “O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” produzindo um espaço e tempo para a abordagem de temáticas que envolvem as religiões/religiosidades nas escolas públicas e privadas do território nacional.

A partir dessa realidade formal/legal envolvendo duas importantes instituições sociais, educação e religião, houve na trajetória do ER alguns problemas que necessitam de reflexões e aprofundamentos se entendermos que sua presença como componente curricular pode colaborar para a construção de uma sociedade que valorize a diversidade humana e as diferenças religiosas. As principais questões que se apresentam são:

1- A ausência do ER nos debates nas universidades públicas a partir dos cursos de licenciatura (em Ciências Sociais, Filosofia, História e Pedagogia), bem como nos documentos oficiais vinculados ao Ministério da Educação (Parâmetros Curriculares Nacionais,1997; Orientações Curriculares Nacionais,2006) promoveu/possibilitou ações com fins proselitistas ou mercadológicos no setor privado da educação?

2- No campo do currículo disciplinar, a vinculação, imposta pelo ordenamento legal, no qual as associações civis/religiosas atuariam como consultoras, beneficiou os interesses privados (confessionais) em detrimento do público e laico? Ou, as associações civis/religiosas substituíram o Estado ao “dirigirem” os processos de implantação da disciplina?

Em meio a esse contexto do ER no Brasil e à emergência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) fomentada pelo MEC, serão apresentados: um breve histórico da disciplina de ER, as legislações que a contemplam e os possíveis impactos produzidos pela implementação da BNCC.

Ensino Religioso no Brasil: uma disciplina constitucional desde 1988

A relação entre sistema educacional e religião no Brasil foi iniciada com as missões jesuítas objetivando a evangelização e a conversão dos indígenas para o catolicismo. Neste ponto, já surge um embate entre religião e Estado, que foi parcialmente resolvido na reforma Pombalina de 1759. O ensino católico jesuíta tinha origem ideológica romana, enquanto, no Brasil, por causa do Padroado Régio concedido ao Rei português pela bula de Leão X, em 1514, seguia as direções do monarca em exercício e da matriz católica lusitana.

Com a constituição da República em 1889 e o fim do Regime Monárquico e, portanto, do Padroado Régio, tornou-se legalmente instituída a separação entre Estado e Religião. Dessa forma, o processo de romanização do catolicismo no território brasileiro pôde se estabelecer e se legitimar, findando, assim, a disputa entre os modelos de catolicismos.  Externamente, a nova organização do Estado, que emergia, tem nessa data um marco histórico, uma vez que sua implantação era orientada por ideais republicanos que propunham um tipo de Estado que fosse laico nos moldes franceses. O desejo inicial era o rompimento com a Igreja Católica, que exercia um forte poder sobre o Estado e a sociedade.

A Igreja Católica foi contrária a alguns desdobramentos dessa separação, logo se posicionando em defesa de seus interesses e pela manutenção de sua participação nas decisões do Estado e na sociedade brasileira. Podemos verificar essa constatação no artigo “A presença do Religioso no espaço público: modalidades no Brasil”, em que o antropólogo Emerson Giumbelli demonstra como a Igreja Católica conseguiu atuar mesmo que em regime de colaboração e se manteve a partir da Constituição Federal de 1934.

Entre as compensações instituídas, houve a inserção da disciplina de Ensino Religioso que contemplou os níveis primários, secundários, normais e profissionais da Educação no Brasil. Inicialmente o Ensino Religioso no currículo da educação básica passou a ser objeto de interesse primeiramente da Igreja Católica e posteriormente de outras entidades religiosas, como menciona a educadora e teóloga Lurdes Caron, em seu livro “O Ensino Religioso na nova LDB: históricos, exigências, documentário”.

Lei de Diretrizes e Bases da Educação

captura-de-tela-2016-12-10-as-08-53-21Diante da complexa relação entre educação e religião em torno de um estado laico, como já mencionado, o ER passou por diferentes redações legais. Nessas alterações, a disciplina foi constituída por diferentes propostas e concepções, e atualmente é considerada como parte da formação básica, de matrícula facultativa, ministrada em horários normais das escolas públicas do ensino fundamental, assegurados a diversidade religiosa, o respeito aos diferentes tipos e manifestações, vedado o proselitismo, como prevê a Lei n° 9475, de 1997. Mesmo o ER possuindo seu arcabouço legal, a disciplina é a única que não possui Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) ou Orientações Curriculares Nacionais (OCN), como as demais disciplinas da Educação Básica.

Com a ausência do ER nos documentos oficiais vinculados ao Ministério da Educação (PCNs e OCNs) e com o suporte legalmente instituído pela Constituição de 1988, algumas entidades civis religiosas, visando manter a disciplina ativa, ou o frutífero mercado editorial e de capacitação de profissionais, ajustaram suas condutas religiosas nesse campo e ampliaram a representatividade religiosa de seus quadros em torno de um “ecumenismo” para terem uma aparente face democrática e, assim, conduzir os caminhos de implantação e produção dos saberes religiosos a serem ensinados no  ambiente republicano.

Outro fator latente é que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira designou as normas para a organização da educação nacional na qual fixa as responsabilidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de organizarem seus respectivos sistemas de ensino em regime de colaboração de acordo com suas atribuições e competências. Aos estados, cabe regular, organizar e manter seus sistemas de ensino como também colaborar com os municípios desde que sejam proporcionais as responsabilidades, o que faz com que os Sistemas de Ensino Estaduais e Secretarias da Educação municipais tenham cada qual sua proposta curricular de ER.  Dessa forma, cada um dos 5570 municípios e as 27 unidades da federação poderiam produzir um total de 5597 propostas diferentes de Ensino Religioso, excluindo-se o setor privado.

BNCC e o Ensino Religioso nos estados

A constituição do arcabouço legal fez com que os representantes das instituições religiosas, por vezes organizados em entidades civis, repensassem suas estratégias para se adequarem aos pressupostos legais, de forma a ampliar a participação das diversas denominações religiosas (locais ou estaduais) para compor uma organização representativa legítima para atuar diante dos sistemas de ensino.

No entanto, constatou-se a inexistência dos Parâmetros Curriculares Nacionais e das OCNs para Ensino Religioso reconhecidos pelo Ministério da Educação, ficando a cargo dos estados e municípios as normas e as diretrizes curriculares. Essa característica fez com que no Brasil fossem formuladas diferentes propostas curriculares divergentes  entre si no que tange à execução, aos conteúdos e à metodologia de ensino da disciplina de ER. Pode-se afirmar que há uma lacuna legal e pedagógica devido à ausência dos Parâmetros Curriculares Nacionais ou das Orientações Curriculares Nacionais para a disciplina de Ensino Religioso e uma esperança de que a BNCC a preencha servindo de parâmetro integrador e norteador essencialmente produzido por argumentos científicos e não pelas propostas das associações ‘civis’ religiosas.

captura-de-tela-2016-12-10-as-08-53-39Na ausência de uma proposta comum, os estados e municípios foram criando suas próprias legislações, tendo como parâmetro os curtos textos das leis já citadas e as antigas associações civis. Pode-se observar na figura 1 que houve o período de 9 anos para que os Estados da Federação elaborassem suas diretrizes para os seus Sistemas de Ensino, no entanto, ainda há municípios sem parâmetros. Depois de 11 anos da consolidação das legislações estaduais, surge, no biênio 2015/2016, um novo debate, que está apenas se iniciando, encabeçado pelo MEC, que fomenta a constituição de uma BNCC, que estabelece conteúdos mínimos para todos os níveis da Educação Básica do país. Dessa vez, o processo não excluiu a disciplina de ER como ocorrera com as formulações dos PCNs (1997) e das OCNs (2006).

No documento inicial da BNCC existem as indicações curriculares elaboradas pela equipe de especialistas convidados para compor a primeira versão oficial que subsidiou a consulta pública, nos meses de setembro a dezembro de 2015. A grade curricular proposta para o ER atende tanto os anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) quanto os anos finais (6º ao 9º ano). Apenas esse fator já promoveria uma necessidade de alteração nas legislações estaduais, pois, na maioria dos estados a oferta da disciplina não ocorre em todos os anos do ciclo. Ao observar, por exemplo, o estado do Paraná,  seria necessária uma expansão da atual oferta, que ocorre apenas no 7º e no 8º ano, para os outros 7 anos. Isso impactaria diretamente em três situações: a primeira na redistribuição da carga horária das demais disciplinas, na aquisição de mais material didático e na contratação de mais docentes

Dessa forma, a certeza existente é que, quando a BNCC para o ER for aprovada pelo Conselho Nacional de Educação, as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE) para o Ensino Religioso terão de  ser readequadas. Talvez mais que isso, algumas precisarão ser reformuladas.

Apesar da perspectiva de a BNCC apresentar avanços no que tange aos estudos das religiões e religiosidades, cabe ponderar que o estudante do nível fundamental ainda não possui embasamento teórico e conceitual para pensar o fenômeno religioso pela abordagem científica (histórica, sociológica, antropológica etc.), haja vista que ele ainda não teve contato com as disciplinas promotoras da desnaturalização e estranhamento, a saber: Filosofia e Sociologia, componentes curriculares obrigatórios do Ensino Médio. Desse modo, estarão limitados a analisar os novos elementos curriculares, que emergirão, a partir da visão de mundo religiosa que já possuem – que é o instrumento do qual dispõem. Por isso, uma necessidade metodológica será começar pela instrumentalização. Ironicamente as disciplinas citadas não têm, grosso modo, nos seus currículos formadores nas Instituições de Ensino Superior, elementos para a atuação no Ensino Fundamental, haja vista que suas licenciaturas preparam para o Ensino Médio.

Esses elementos apontam para o fato de que a ascensão do Ensino Religioso à condição de disciplina via BNCC, com tratamento similar às demais que compõem o Ensino Fundamental, poderá promover um novo campo de atuação profissional e alterar não apenas as legislações do Ensino Fundamental nos diferentes Sistemas Educacionais, mas também poderá desencadear mudanças no Ensino Superior.

Considerações finais

A BNCC para o ER poderá trazer grandes mudanças, não apenas dentro das salas de aula, mas em toda a cadeia de ensino, possibilitando mudanças nas legislações estaduais, municipais e também nos currículos das instituições de nível superior. Entre outros aspectos, a proposta da BNCC fomenta o debate nos meios acadêmicos brasileiros sobre o futuro da Educação Básica no Brasil e inseriu no campo das universidades públicas o reconhecimento da disciplina de ER e suas demandas negligenciadas historicamente.

A orientação curricular da BNCC poderá consolidar o ER ao constituir uma perspectiva nacional de pluralismo e de reconhecimento das diversidades com abordagem liberal ou deliberacionista, ao indicar a proposição de um ensino integrado aos valores republicanos, do reconhecimento e valorização das diferenças e defesa da igualdade de direitos do cidadão produzidos pela perspectiva científica.

As DCEs, ao assimilarem as contribuições da BNCC no ER permitirão fomentar uma educação que irá combater as intolerâncias, preconceitos e defenderá os processos de reconhecimento e valorização das diversas identidades religiosas brasileiras.

Para saber mais

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/topicos/10649501/artigo-210-da-constituicao-federal-de-1988>. Acesso em: 10 mai 2014.

BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L 9394.htm>. Acesso em: 10 jan 2016.

BRASIL. Lei n° 9.475, de 22 de julho de 1997. Dá nova redação ao art. 33 da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9475.htm#art1>. Acesso em: 23 dez 2015.

CARON, Lurdes. O Ensino Religioso na nova LDB: históricos, exigências, documentário. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

GIUMBELLI, Emerson.  A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. In: Revista Religião e Sociedade, v 28, n° 2, 2008. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rs/v28n2/a05v28n2.pdf.>. Acesso em: 10 mai 2014. P. 82.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/conhecaDisciplina?disciplina=AC_CIH&tipoEnsino=TE_EF>. Acesso em: 23 dez 2015.

PARANÁ. Conselho Estadual de Educação. Normas para o Ensino Religioso no Sistema Estadual de Ensino do Paraná (2006). Disponível em: <http://www.cee.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/Deliberacoes/2006/deliberacao_01_06.pdf>.Acesso em: 23 dez 2015.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Estado do Paraná. Diretrizes Curriculares da Educação Básica Ensino Religioso. Governo do Paraná: 2008. Disponível em: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/diretrizes/dce_er.pdf.>. Acesso em: 10 mai 2014.

STF. Audiência pública- Ensino religioso nas escolas públicas (18/31). Vídeo (17:51min). Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=aEF4x4MFZYk>. Acesso em: 15 de jun 2015.

STF. Ensino religioso nas escolas públicas é questionado em Ação Direta Inconstitucional. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=157373&c aixaBusca=N>. Acesso em: 15 jun 2015.

 

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Em ordem da esquerda para direita: Andressa Melo (à esquerda), Fabio Lanza (no centro, de camisa amarela) e Luis Gustavo (à direita, de camisa azul).

 


Fabio Lanza
é doutor em Ciências Sociais, Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais e Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Coordenador do Laboratório deEstudos sobre Religiões e Religiosidades e integrante da equipe do Programa OBEDUC/CAPES -“Observatório da Educação - Ciências Sociais/UEL PR”. E-mail: lanza1975@gmail.com.
Luís Patrocino
é mestre e licenciado em Ciências Sociais, Especialista em Estatística pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador e bolsista do Programa OBEDUC/CAPES “Observatório da Educação – Ciências Sociais/UEL” e do Laboratório de Estudos sobre Religiões e Religiosidades da UEL. E-mail: lgpatrocino@hotmail.com
Andressa Melo
é graduanda do curso de Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina, bolsista do Programa OBEDUC/CAPES - “Observatório da Educação - Ciências Sociais/UEL PR” com bolsa de graduação, ao projeto integrado “Laboratório de Estudos sobre Religiões - LERR” e ao PROIC - UEL. Email: andressasilvamelo123@hotmail.com.

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