A Arqueologia tem como objeto de sua prática a contextualização dos vestígios culturais das populações do passado. Para o caso brasileiro, a disciplina tem sido fundamental para o reconhecimento de uma parte da nossa história que não consta nos documentos históricos e em parte da nossa história nacional. A Região do Nordeste brasileiro foi onde mais se intensificaram os processos de colonização. Durante o primeiro governo geral do Brasil, os indígenas não seriam mais os parceiros comerciais, nas atividades de escambo, para serem utilizados como mão de obra nas empresas coloniais e, ainda, como aliados nas lutas em conflitos internos. As populações que ocuparam os sertões do Nordeste tornaram-se uma unidade histórica marcada pela exclusão e regionalmente condicionada aos fatores ecológicos e ao prolongado contato com as frentes de colonização. A ocupação colonial dos sertões interiores no Nordeste seria realizada através de três estratégias sucessivas, a guerra justa; a conversão e catequização; e a mistura étnica. As estratégias da guerra eram empreendidas sob a justificativa de defesa e represália por ataques das nações indígenas hostis e complementada com a instalação de povoações que garantiam a ocupação das sesmarias. A conversão em aldeamentos reunia os grupos indígenas que eram tidos como mão de obra livre e administrada pelos missionários religiosos, enquanto a consolidação da assimilação física e cultural dos grupos indígenas no Nordeste ocorreu com as medidas pombalinas, que incentivavam e orientavam a ocupação não indígena nos aldeamentos. Esses processos que conduziram a descaracterização cultural indígena, a partir da lei de terras datada de 1850, levaram à extinção muitos aldeamentos sob o argumento de que, nestes, restavam poucos sobreviventes, ocorrendo suas transferências a outros aldeamentos maiores e, consequentemente, a liberação de suas terras. Deve-se destacar a capacidade de sobrevivência de muitas etnias indígenas mesmo diante dos conflitos vividos pelas comunidades nos sertões do Nordeste, onde o contato prolongado e a imposição de padrões culturais externos contribuíram para a perda da identidade. Nesses sertões, especialmente, a população livre e pobre de origem indígena teve oportunidade de expandir-se, favorecida pelas condições da economia regional e à base da subsistência apoiada pela expansão da pecuária. Os grupos indígenas no Nordeste também formam uma identidade porque foram marcados por processos históricos e regionais de emergência étnica. Existe, na nossa história recente, um paradoxo diante das lacunas etnográficas e da historiografia no movimento dos povos indígenas do Nordeste do Brasil, ilustrado nas últimas décadas pelo número crescente de povos indígenas que estão se organizando e reclamando direitos e propriedade de terra quando estes se pensam e são reconhecidos como originários e autóctones. Estes são movimentos sociais e reivindicações políticas de reconhecimento étnico mesmo após a sociedade nacional considerá-los extintos. Sabe-se que o território dos interiores do Nordeste era dominado pelos grupos indígenas e que, até os dias atuais, se fazem reivindicações sobre a terra e direitos associados a ela. O que não sabemos, e que especialmente a Arqueologia tem a contribuir, diz respeito ao contexto cultural antes da ocupação colonial, e consequentemente à antiguidade e diversidade desse contexto. Ao analisar o conjunto de sítios arqueológicos identificados nessa região do semiárido nordestino, e comparando ao contexto arqueológico nacional, se destacam os sítios de grafismos rupestres. A região é a que apresenta maior concentração desse tipo de vestígio, intencionalmente pintados ou gravados nas rochas. De fato, todas as demais regiões no país também apresentam sítios com essas características, assim como também se observam outros conjuntos de vestígios no semiárido, como de fragmentos de vasilhas, lascas e artefatos em pedra, restos de alimentação associadas a fogueiras inumadas e ainda sepultamentos com enxovais fúnebres. Entretanto, é principalmente nos interiores do Nordeste, sob o domínio semiárido, que se observam grandes concentrações regionais de sítios arqueológicos com grafismos pintados e gravados sobre as rochas, onde se destacam a região da Serra da Capivara, no Piauí, o Vale do Catimbau, em Pernambuco, a região do Seridó, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, a região Central, na Bahia, e Xingó, no Vale do São Francisco. Pesquisas arqueológicas sistemáticas e o consequente reconhecimento dessa história pré-colonial brasileira passaram a ilustrar a formação da nossa cultura a partir do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), entre as décadas de 1950 a 1970. Esse Programa identificou uma grande diversidade de sítios arqueológicos por todo o território, entre sítios de concentração de fragmentos cerâmicos de vasilhas, os sítios com concentração de material em pedra, lascados ou polidos, e os sítios de grafismos rupestres, sejam pintados, percutidos ou abrasivos. Desse período de levantamento de sítios pelo Pronapa, temos o surgimento de uma categoria de análise amplamente utilizada no país, conhecida por Tradições Arqueológicas. Essas são, de fato, conjuntos de identidade técnica ou tipológica dos vestígios, fundamentalmente definidos de maneira arbitrária pelo pesquisador a partir de artefatos-tipo. Assim sendo, temos as tradições arqueológicas como conjuntos específicos para cada natureza material dos vestígios, ou seja, tradições cerâmicas, tradições de pedra lascada ou polida e tradições de grafismos rupestres. A nossa região Nordeste contempla as tradições para grafismos rupestres, conhecidas como Tradição Nordeste (foto 01), Tradição Agreste (foto 02), ambas de pinturas, e ainda Tradição Itacoatiara (foto 03), para gravuras em baixo relevo nas rochas. Outras tradições ainda, como a Tradição Itaparica, que se caracteriza por conjunto associado a artefatos lascados em pedra, e as tradições ceramistas, como Tradição Aratu, Tupi, também ocorrem amplamente pela região. Entretanto, esse panorama arqueológico estabelecido a partir da classificação tipológica dos vestígios não corresponde ao contexto cultural das populações do nosso passado em questão. São classificações do universo vestigial deixado pelos grupos, mas é provável que os mesmos possuíssem um amplo território para exploração dos recursos necessários à manutenção econômica e social distribuídos pela vasta área dos sertões, e inclusive, os mesmos grupos que deixaram vestígios em pedra ou cerâmica, concentrados em determinado sítio, também pintaram ou gravaram as paredes rochosas em outros locais. As diferentes unidades de paisagem podem representar um conjunto dinâmico de recursos no tempo e no espaço, principalmente relacionados à disponibilidade sazonal favorável aos grupos humanos. Os grupos que ocupavam as paisagens antes da ocupação do colonizador europeu tinham, nos recursos naturais, muito provavelmente, um conhecimento territorial que incluía uma dinâmica rede de recursos associados e distribuídos em diferentes conjuntos de paisagens e integrando diversos usos. Ao pesquisar os sítios rupestres, torna-se necessário que se analisem esses sítios relacionando-os aos diferentes aspectos envolvidos nos processos de ocupações e escolhas dos grupos pré-coloniais, principalmente com as condições ambientais do entorno, a disponibilidade de recursos próximos a cada sítio, e ainda as possíveis estratégias de escolhas e utilização do ambiente natural inferidas para os grupos pré-coloniais. Cada sítio representa um conjunto dessas variáveis, integrando os potenciais de seu entorno. Os contextos de pinturas rupestres não permitem um estudo cronológico, pois, ao contrário dos vestígios inumados, não se encontram associados a depósitos estratigráficos. Para o estabelecimento de cronologias das ocupações antigas na região seriam necessárias mais datações radiocarbônicas, obtidas a partir de amostras ósseas de sepultamentos escavados, ou de restos de fogueiras em contextos de ocupação, também evidenciadas em intervenções de escavação. Os grupos pré-coloniais deixaram, através dos vestígios arqueológicos, evidências de escolhas específicas por recursos fundamentais para a sobrevivência e manutenção sócio-cultural, o que torna possível inferir algumas estratégias de escolhas no processo de ocupação das paisagens pré-coloniais nos interiores do Nordeste do Brasil. Em muitos locais nos sertões, são observados sítios arqueológicos de grafismos rupestres dos quais alguns foram pesquisados e poucos foram escavados. A antiguidade da ocupação dessas paisagens pode ser comprovada por pesquisas na região do Sudeste do Piauí, onde a formação rochosa do local permitiu a conservação de vestígios culturais desde a transição climática do Pleistoceno para o Holoceno, por volta de 15 mil anos atrás, até o período de colonização. As demais áreas de concentração de sítios, onde houve pesquisas arqueológicas com intervenções, como o Vale do Catimbau/PE, Seridó/RN, Xingó/AL e Central/BA, apresentam sequências estratigráficas também antigas por volta de 6 mil e 4 mil anos até próximo ao período colonial. As datações mais antigas remetem justamente à área mais intensamente pesquisada nas últimas décadas através de intervenções sistemáticas de escavação arqueológica no Piauí. Para as demais regiões dos sertões, o número reduzido de escavações não tem proporcionado novos dados cronológicos de maior antiguidade, até mesmo sobre o contexto sócio-cultural evidenciado através dos vestígios materiais escavados, que trariam mais informações a respeito dos grupos do passado, sua organização e dinâmica, os modos de vida e subsistência. Muitos sítios de pinturas compõem um referencial na paisagem, como marcos em formações rochosas destacadas, seja nas depressões, encostas e planaltos, em lugares que se avistam grandes distâncias. Acredita-se que a mobilidade destes grupos pré-coloniais era a principal estratégia na obtenção dos recursos necessários à manutenção sócio-cultural. Entretanto há locais em que a presença de água, especialmente em nascentes localizadas ao sopé das encostas íngremes, dava condição de permanência de indivíduos ao longo de todo ano. Os sítios arqueológicos, desta maneira, passam a ser observados a partir do seu contexto integrado à paisagem. Nas últimas décadas, novas pesquisas e abordagens diferenciadas têm contribuído para uma compreensão estratégias de escolhas no processo de ocupação nos períodos anteriores às ações de colonização, nas quais as pesquisas em Arqueologia deveriam acompanhá-las. O universo de vestígios culturais, objeto de pesquisas arqueológicas, possuem uma participação fundamental na socialização do conhecimento do passado, pois, mesmo diante da importância dos documentos escritos, os vestígios da cultura material atingiriam diretamente os membros da sociedade. Foram poucos os trabalhos de pesquisa realizados a partir da integração entre disciplinas na construção de uma história indígena. A interpretação dos vestígios arqueológicos integrados a abordagens de outras disciplinas, como antropologia e a etnohistória, a geografia e os estudos integrados das paisagens, poderiam se aproximar da compreensão de uma história, de fato, indígena, a partir de suas próprias dinâmicas. Nesse cenário, portanto, dá-se o devido destaque à integração das abordagens em torno do tema das ocupações e paisagens arqueológicas, onde a História e a Geografia têm tido uma participação decisiva.A história do Brasil, para o mundo ocidental, começou no século XV. Entretanto, os estudos arqueológicos têm demonstrado uma grande variedade de vestígios, concentração ou dispersão dos mesmos pelas diferentes formações de paisagens e em contextos ambientais também variáveis. Desde a ocupação humana do continente até os processos iniciais das empresas coloniais europeias, que remontam a partir do século XV, mas, principalmente, os séculos XVI, XVII, e até XVIII, a história dos grupos autóctones brasileiros ainda está para ser contada.
No processo de colonização, houve períodos de grandes secas em que grupos indígenas das regiões dos sertões viram-se obrigados a se dirigir para a costa, como se verificou nos anos de estiagem em 1583, 1603, 1614, 1645 e 1692. Os sertões eram domínio dos grupos indígenas até a primeira metade do século XVII, enquanto que a ocupação portuguesa foi lenta e efetivada com a inserção da pecuária na caatinga, principalmente via o vale do São Francisco e seus principais afluentes.
Os sertões do Nordeste brasileiro correspondem, em grande parte, ao semiárido regional de aspecto climático, muito quente e sazonalmente seco, o que tem sido determinante na configuração das paisagens sertanejas. O sistema hidrográfico, por sua vez, é dependente das chuvas sazonais que apresentam sequências irregulares ao longo dos anos, intercalando longos períodos de secas trágicas para a vida no bioma da caatinga.
Professor de Geografia da Universidade de Pernambuco (UPE) em Petrolina e Arqueólogo formado nas Geociências.