Edgar Lyra A necessidade de uma Base Nacional Curricular Comum A necessidade de uma “Base Nacional Comum Curricular” é apontada desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996. O Plano Nacional de Educação (PNE) – também exigência da LDB – foi finalmente homologado em meados de 2014 e tem entre suas metas a elaboração e implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Trata-se, em suma, de necessidade longa e legalmente reiterada. Mas, para que melhor se compreenda o contexto de elaboração desta Base e, nela, a presença e o papel do ensino de Filosofia, algumas exigências do PNE precisam ser evocadas e discutidas. A primeira é a de que a elaboração e implementação da BNCC seja fruto de “permanente negociação e cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.”. Essa exigência é de suma importância para um dispositivo que pretenda ter acolhida em todo território nacional. Acabou fazendo prevalecer o modelo de trabalho levado a termo pelo Ministério da Educação (MEC) através de sua Secretaria de Educação Básica (SEB), que envolveu a constituição de uma equipe de especialistas e assessores com mais de cem integrantes, vindos de todos estados do Brasil e de todos os segmentos da educação, gente com ideias próprias e diversificadas sobre o que possa ser uma educação básica de qualidade. A necessidade dessa construção plural e negociada fez, simultaneamente, com que o processo adquirisse altíssima complexidade, passando pela mediação de divergências visíveis não apenas no debate nos meios de comunicação de massa, mas, em outro tom, presentes também entre a equipe de trabalho constituída pelo MEC. É ainda relevante lembrar que a BNCC não é um currículo nacional, mesmo porque deve constitucionalmente respeitar a autonomia de Estados e Municípios na gestão dos seus sistemas de ensino, o que significa que o trabalho de reformulação curricular não termina com a homologação do documento. A Base Nacional precisa ser bem assimilada em suas prescrições para que chegue a originar bons currículos, ao mesmo tempo unidos por espírito comum e diferenciados segundo necessidades, por exemplo, regionais e de percurso formativo. Esse é mais um motivo para que haja um envolvimento realmente amplo da sociedade em sua discussão e implementação. A estrutura da BNCC e a história recente do ensino de Filosofia no Brasil Outra exigência relevante do PNE é a de que a BNCC seja estruturada em termos de direitos e objetivos de aprendizagem. Esse direcionamento parece responder à exigência de que a Base seja prescritiva sem ser impositiva, em outras palavras, de que confira unidade ao projeto brasileiro de educação básica possibilitando, ao mesmo tempo, que os currículos estaduais e municipais contemplem diversidades como as já referidas. Bem se vê, está longe de ser trivial definir a medida dessa prescritividade. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e Orientações Curriculares, por exemplo, documentos até então mais pontualmente voltados para a elaboração dos currículos estaduais de Filosofia, foram elaborados visando ao desenvolvimento de habilidades e competências. Estruturados a partir de eixos de Representação e comunicação, Investigação e compreensão, e Contextualização sociocultural, apontavam para a aquisição pelos alunos do Ensino Médio de capacidades de leitura, articulação interpretativa, argumentativa, e contextualização de textos e questões filosóficas, o que foi entendido por muitos como muito vago ou aberto. Visando a superar “as ambiguidades dos Parâmetros Curriculares Nacionais”, as Orientações Curriculares avançaram na definição de conteúdos e metodologias, produzindo listas extensas de tópicos, que acabavam por deixar aos Estados e escolas as escolhas necessárias à produção de currículos condizentes com o efetivo tempo destinado ao componente na grade curricular. Todos esses documentos tinham, como razão última, de ser a possível contribuição da Filosofia para a formação da cidadania e aquisição de autonomia, ainda que ambas as noções – cidadania e autonomia – fossem postas em questão, em maior ou menor grau, em cada um desses documentos. Foi ainda importante, na medida em que a proposta da Filosofia para a BNCC deve contemplar todo o território nacional, fazer um exame comparativo de todos as propostas curriculares estaduais vigentes e disponíveis para consulta. Esse exame mostrou que a Filosofia vinha sendo ensinada, desde sua obrigatoriedade definida pela Lei 11.684, de 2008, de formas muito diversas nos vários Estados, tanto do ponto de vista da estruturação dos currículos – por conteúdos, campos temáticos, eixos, competências, etc. – quanto da progressão do seu ensino do primeiro ao terceiro ano. Por fim, entre os fatores levados em conta no encaminhamento dado à proposta para o ensino de Filosofia na BNCC, está o fato de que, sendo a Filosofia essencialmente crítica de si mesma, há inúmeras formas de pensá-la e ensiná-la, formas que se materializam em correntes filosóficas e filiações teóricas muito diversificadas, constatação esta, aliás, explícita nos PCNs para Ensino Médio. Quer dizer que mesmo onde há disponibilidade de professores licenciados em Filosofia, a diversidade de formações e filiações acaba levando a formas múltiplas de colocação em prática dos currículos vigentes. A proposta do ensino de Filosofia na BNCC As injunções até agora apresentadas levaram a equipe de especialistas comissionada pelo MEC a optar por uma formulação tão concisa quanto possível do texto de apresentação e dos referidos objetivos de aprendizagem da Filosofia no Ensino Médio. A intenção foi dar margem aos professores, colégios e Estados para definir caminhos de convite dos alunos ao filosofar sem, entretanto, deixar de enfatizar experiências essenciais, na ausência das quais não se poderia dizer que uma introdução à Filosofia teria efetivamente tido lugar, especialmente em sua diferença relativa aos outros componentes curriculares e práticas mais gerais de saber e crítica. Salta aos olhos a formulação minimalista do documento entregue à consulta pública. São apenas doze objetivos de aprendizagem propostos para os três anos do Ensino Médio, número substancialmente menor que o de qualquer dos outros componentes da Base. Cada um desses objetivos foi formulado de modo que o professor possa atendê-los por caminhos diversos, pondo em prática aquilo que de melhor sua formação lhe permita mobilizar. O intuito dos elaboradores – dentre os quais me incluo – foi priorizar a possibilidade do acontecimento, nas aulas e a partir das aulas, da experiência de um pensar que possa efetivamente ser chamado de filosófico. Tome-se como exemplo o primeiro objetivo proposto: Realizar a experiência do pensar filosófico, diferenciando-o dos demais saberes, descobrindo sua presença implícita em conhecimentos já adquiridos e explorando possíveis diálogos com matrizes de pensamento não ocidentais. O objetivo pretende que o estudante descubra, ao ingressar no Ensino Médio, a presença da Filosofia em conhecimentos e questionamentos já presentes em sua vida e história. A inclusão do componente na grade curricular deve explicitar essa presença, proporcionando a partir daí a identificação das singularidades do pensar filosófico, por exemplo, a vocação interrogativa, a capacidade de lidar com a complexidade, mesmo com a ausência de respostas únicas e definitivas. Esse objetivo pode, enfim, em sua abertura, dar suporte a estruturas curriculares variadas. Deixando por ora em aberto a questão da construção curricular final – de competência de Estados e escolas – percebe-se que o professor pode convidar o estudante a essa experiência de pensamento de modos variados. Pode, por exemplo, trabalhar a estranheza provocada por determinado texto ou passagem filosófica clássica. Pode provocar uma situação problema, que leve o estudante a um questionamento mais profundo que o habitual e, consequentemente, à necessidade de conseguir apoios para enfrentá-lo. Pode ainda enveredar pelas diferenciações entre mera opinião, crença forte, conhecimento científico e reflexão filosófica. Enfim, pode o professor optar por uma perspectiva histórico-filosófica, por exemplo, aquela que identifica a origem da Filosofia com o advento grego do logos, como forma alternativa ao mito de enfrentamento das grandes questões com que se depara o homem, entre elas a do nascimento das teorias do direito e da política, como nós ainda hoje os conhecemos. Cada uma dessas opções, é claro, demandará competências teórico-práticas distintas, mas pretende-se que isso não signifique nenhum relativismo curricular. Primeiro, porque esse objetivo de aprendizagem deve pôr-se em diálogo com os demais, ainda com o texto de apresentação do componente e, mais amplamente, com o papel formativo geral conferido a essa etapa de finalização do Ensino Básico. O segundo objetivo do primeiro ano, por exemplo, fala de capacitar o aluno para discutir problemas de origem, identidade e historicidade da Filosofia, identificando, nas suas principais obras, momentos e contextos, simultaneamente questões comuns e formas diversas de enfrentamento dessas questões. Oferece assim um complemento mais imediato ao anterior, ao chamar atenção para a importância do reconhecimento da historicidade da Filosofia, ou seja, do fato de que a Filosofia enfrentou suas persistentes questões de modos distintos ao longo dos séculos, sendo as principais correntes e autores da história da Filosofia os “lugares” privilegiados onde essa recorrência de problemas e diversidade de enfrentamentos se faz presente. Não passe despercebida, nesse sentido, a menção no objetivo anterior a “possíveis diálogos com matrizes de pensamento não ocidentais”, o que permite uma abertura adicional para a discussão das origens filosóficas de um Ocidente hoje globalizado e globalizante. O que a proposta da Filosofia na BNCC intencionalmente não faz é declinar quais autores devem ser mobilizados entre as dezenas de filósofos ditos clássicos. Até porque qualquer recorte seria insuficiente nesse sentido, com ainda mais razão em função da reduzida carga horária destinada ao componente. Forçar algo desse tipo seria ou bem incorrer em arbitrariedades flagrantes, ou incentivar um tratamento tão superficial dos vários filósofos, que nada mais teria a ver com a experiência do pensamento que se quer proporcionar ao estudante. Como seja, o último objetivo de aprendizagem proposto para o primeiro ano aponta para a necessidade desses estudos e reconhecimentos não se descolarem da realidade e do tempo dos estudantes, a ponto de tornarem-se desprovidos de sentido e atratividade. Trata-se aí tanto de viabilizar o interesse pelas aulas de Filosofia, quanto de abrir ao estudante possibilidades de enxergar a realidade da qual faz parte de formas mais amplas e reflexivas, capacidade de todo necessária a um real exercício de cidadania, local e planetária. Segue a lista de objetivos, no segundo ano, falando da exploração dos fundamentos lógicos e retóricos dos discursos, da capacidade de problematizar o entendimento vulgar do “método científico”, chegando, enfim, no terceiro ano ao enfrentamento filosófico de questões mais explicitamente existenciais, éticas ou políticas. Um último implícito da proposta do ensino de Filosofia na BNCC, que precisa ser trazido à luz, é o entendimento geral – exposto no texto introdutório da BNCC, de título “Como ler a Base” – de que, resguardadas as transições entre etapas, e observado o conjunto de objetivos que as caracteriza, os elaboradores dos currículos podem propor novos sequenciamentos dos objetivos de aprendizagem. Isso significa liberdade de combinações ao longo dos três anos, bem entendido, desde que garantida ao aluno, desde o início do primeiro ano, uma aproximação à singularidade do pensar filosófico, e observada, ao final do terceiro, a necessidade e o entrelaçamento dos objetivos propostos. A consulta pública e os horizontes do trabalho O documento submetido à consulta pública – hoje em fase de reelaboração – teve boa recepção nos debates e contribuições públicas até este momento, com o primeiro prazo de colaborações via Portal da Base tendo se encerrado em 15 de dezembro com um total de mais de 9 milhões de interações. Mas, não se trata de encarar essa recepção positiva como legitimação plebiscitária da proposta inicial, e sim de processar qualitativamente as críticas e sugestões, de modo a produzir um documento final tão claro, articulado e consistente quanto possível. São aguardados ainda os pareceres encomendados a leitores críticos de expressão na área, além de novas contribuições via Portal, cujo prazo foi estendido até dia 15 de março de 2016. São possíveis ainda outras vias de contribuição, presencial e não presencial, de redes de ensino e outras instituições, mas não cabe aqui discutir cada uma delas. Um dos senões recorrentes nos encontros presenciais públicos para discussão da proposta foi, por exemplo, a suspeita quanto ao processamento conjunto das várias contribuições, seja por questões de transparência, seja por questões técnicas originadas do grande volume de dados e da diversidade de pessoas e instituições que se dispuseram a colaborar no processo. Essas suspeitas, muito razoáveis, espera-se que se dissipem na medida em que a sociedade for tendo acesso aos critérios usados no tratamento dos dados. Fora o majoritário acolhimento pelos leitores da proposta apresentada, registram-se entre as críticas mais pontuais à Filosofia boas sugestões de melhoria do texto de apresentação e de seus objetivos. Entre as menos pontuais destacam-se objeções à abertura dos objetivos, sugerindo que sejam mais prescritivos ou definidos, muitas vezes sugerindo a inclusão de nomes de filósofos e temas ao conjunto. Chamam ainda atenção as ponderações de que tópicos julgados importantes estariam excluídos da proposta, não obstante esses tópicos poderem ser ensinados a partir dos objetivos propostos. Fato é que juntas, todas essas contribuições ajudarão a melhor precisar os vários textos, apontando, ademais, desde já, para a necessidade de incluir na apresentação do componente uma melhor explicitação de como ler seu conjunto de objetivos de aprendizagem, de modo a que melhor possam cumprir seu duplo papel de prescrever o que é essencial e possibilitar vias diversificadas de acolhê-los nos currículos e salas de aula. Um último e importante comentário: boa parte dos receios quanto a uma proposta mais aberta para o ensino de Filosofia na BNCC tem a ver com questões “externas” à Base, como a indisponibilidade de professores bem formados, a remuneração e o tempo livre para preparo de aulas, enfim, com gestores e condições de trabalho inadequadas nas escolas brasileiras. Cabe sobre isso ressaltar que há consciência plena entre os especialistas e assessores – não só de Filosofia – que, desassistida de outros esforços em boa medida presentes no Plano Nacional de Educação, a BNCC pouco pode. Ela deve fazer-se acompanhar de uma ampla gama de ações, que envolvem rever a atratividade do magistério, também a qualidade da formação dos professores, inicial e continuada, assim como melhorar as condições gerais de trabalho nas escolas. Bom lembrar que também a educação informal precisa ser posta em debate. À BNCC cabe, em suma, num esforço coletivo, inaugurar e dar chão a um processo de priorização da educação básica no Brasil, que articule todas as suas dimensões, não só as curriculares. É ao mesmo tempo um grande e ainda insuficiente préstimo que, com os debates em torno da BNCC, a educação venha progressivamente se elevando às pautas mais visíveis de discussão pública no país.
é mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente, é coordenador do Grupo de Trabalho Heidegger, da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), colaborador no Mestrado Profissionalizante em Ensino de Filosofia do CEFET-RJ e assessor da SEB-MEC na elaboração do documento de Ciências Humanas da Base Nacional Curricular Comum. Tem experiência na área da Filosofia Contemporânea, especialmente em problemas éticos, políticos e pedagógicos ligados à atual hegemonia tecnológica e seus efeitos ambientais.