ISSN 2179-1287
Número 6 | out/nov/dez 2011

A expressividade imagética do sertão no cinema

Katia Augusta Maciel
Mariana A. C. da Cunha

É um desafio tentar capturar e comentar o potencial imagético do sertão somente com palavras. Se pudéssemos usar uma colagem de imagens dos tantos filmes rodados na região, talvez conseguíssemos um impacto maior, apelando para a sensibilidade interpretativa dos leitores. Mas, aceitando o desafio, as palavras do escritor Ariano Suassuna nos parecem adequadas como ponto de partida para a discussão. Certa vez, em depoimento para o documentário No sertão eu vi, Suassuna afirmou que “a beleza do sertão é ligada ao grandioso. Ele é grandioso e terrível em certos momentos. O que dá à beleza dele uma conotação muito diferente, muito estranha, mas muito forte”. Essa afirmação pode ser compreendida à luz do conceito do sublime. Trata-se de um conceito bastante difundido em estudos da estética de ambientes naturais para descrever lugares de uma incomparável grandeza estética, que inclui as impressões de magnitude e beleza natural a que se refere Suassuna.

A interpretação de Suassuna ao que há de sublime no sertão também diz respeito a aspectos terríveis. O que seriam? Talvez, o poder alegórico de imagens como as carcaças de gado morto na beira da estrada, o chão de terra rachado pela seca, o sol impiedoso e os rostos marcados pela dureza da vida, explorados em filmes canônicos do cinema brasileiro como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha (1964), e Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963). Mas não seriam também horrendas as imagens da invasão de eletrodomésticos, flores e piscinas de plástico, por exemplo, nas feiras livres sertanejas como símbolos de uma suposta modernidade globalizada? Esses símbolos ganham destaque em produções mais recentes como Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, 2009, e O céu de Suely, 2006, também dirigido por Aïnouz.

Nessas produções, há uma nova abordagem do sertão, que é expressa mais pela vida nos centros urbanos sertanejos do que no campo. O enfoque desses filmes é num sertão de “carne e osso”, como argumenta Aïnouz no making of do filme O céu de Suely, se referindo às pessoas que habitam o sertão, que possuem sonhos e desejos reais, atuais, que consomem, amam, choram e vivem o dia a dia do lugar, agora não mais povoado por “santos guerreiros” nem “dragões da maldade”, como nos filmes de Glauber Rocha. Deixando de lado, por não ser possível aprofundar aqui, a discussão sobre os efeitos nefastos da suposta modernidade promovida por certas práticas de globalização numa economia capitalista, é possível perceber que alguns filmes têm contribuído para novas percepções do espaço e da gente do sertão. O legado dessas novas abordagens é que a região tem sido explorada imageticamente sob diversas perspectivas, o que equivale a dizer que a expressividade imagética do sertão no cinema brasileiro agora é plural, e não mais dominada pela visão canônica de um lugar parado no tempo, seco, isolado, miserável. Vale lembrar, no entanto, que esta pluralidade encontrada no cinema dos anos 2000, pós-retomada, está relacionada a mudanças históricas, econômicas e culturais específicas. Os filmes do Cinema Novo e neo-realistas citados acima tinham uma proposta política e estética para a consolidação de um cinema moderno no Brasil. Por isso, valorizaram certos aspectos físicos e culturais da região que melhor se adaptavam a essa proposta, contribuindo, mesmo que involuntariamente, para uma visão estereotipada.

O sertão vem sendo retratado no cinema brasileiro desde pelo menos 1936, quando o libanês Benjamin Abraão filmou as primeiras e únicas imagens documentais do bando de Lampião, que podem ser vistas no filme Lampião, rei do cangaço, lançado por ele mesmo e censurado pelo governo de Getúlio Vargas, e também no longa-metragem dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas O baile perfumado, 1997, que incorpora imagens originais feitas por Abraão. É curioso observar que nem na obra de 1930 e nem no filme de 1997, os aspectos estereotipados da geografia da região são explorados. Em ambos os filmes, os cangaceiros são mostrados dançando, se perfumando e tomando uísque importado em cenários naturais que revelam uma caatinga arborizada, cortada por riachos, povoada com pessoas, gado, cachorros. Enfim, um lugar cheio de vida. Essa representação da caatinga contrasta com as imagens exploradas em filmes do Cinema Novo, em sua fase inicial nos anos 60, em que o sertão seco e miserável se torna uma alegoria imagética para a representação de forças políticas e econômicas antagônicas.

O êxito dos realizadores do Cinema Novo em utilizar alegoricamente a expressividade imagética do sertão continua a influenciar cineastas brasileiros, embora os filmes mais recentes tenham sido muito criticados por se afastarem da proposta política do Cinema Novo e explorarem imagens clichês da região. Exemplos incluem Sertão das memórias, 1996, Corisco e Dadá, 1996, e até os bem sucedidos Central do Brasil, 1998, e Abril despedaçado, 2001. Não é que essas imagens não possam ser utilizadas, e Walter Salles o faz com maestria nos últimos dois filmes citados, mas produções recentes demonstram o quanto os aspectos sublimes do sertão estão enraizados e vivos na cultura cinematográfica brasileira. Esses filmes, definidos pela crítica cinematográfica como filmes da “retomada”, acabam por ter o papel de resgatar uma memória do cinema brasileiro, como o próprio nome sugere. Portanto, a cinematografia brasileira desse período se destaca pelo apelo a temas já explorados pelo cinema moderno (enraizados em espaços significativos como a favela e o sertão), em busca de uma consolidação do cinema brasileiro contemporâneo na produção mundial. Essa consolidação e, como consequência, o reconhecimento internacional do cinema brasileiro de meados dos anos 90 e início dos anos 2000, acontece em detrimento a uma exploração mais aprofundada da própria linguagem cinematográfica. Se pensarmos em termos de gêneros cinematográficos, faltou na proposta dos cineastas da retomada uma busca pela diversidade e exploração de diferentes gêneros.

Por outro lado, é grande o número de produções que exibem uma renovação de linguagem e de abordagens da região, apostando no potencial imagético de um sertão em que o arcaico convive com símbolos da modernidade como aspirinas, motocicletas e caminhões. É o caso de filmes como Árido Movie, 2005, A máquina, 2005, Cinema, aspirinas e urubus, 2005, e Deserto feliz, 2007. Alguns desses filmes apresentam um trabalho de renovação da linguagem cinematográfica em termos estéticos e narrativos, marcando possivelmente uma nova fase da produção nacional, depois de um período de dez anos de consolidação pós-1995, ano da controvertida “retomada”. Saindo um pouco do sertão nordestino e olhando para outros sertões brasileiros, esse argumento de uma pluralidade de expressões imagéticas da região na produção cinematográfica brasileira fica mais claro.

O sertão de Minas Gerais tem sido retratado em filmes como Mutum, de Sandra Kogut, 2007, e Girimunho, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr., 2011. Neste último, as imagens exploram a diversidade geográfica da região, a força do Rio São Francisco, o contraste entre vilarejos e metrópoles ribeirinhas, áreas secas e verdes e as diferentes gerações que habitam a região, com seus conflitos, sonhos, incertezas e sabedoria própria que tem raízes na cultura popular e na convivência com a natureza. O sublime reaparece aqui em imagens panorâmicas e que exploram a profundidade de campo enfatizando a vastidão da paisagem sertaneja, mas a ideia de isolamento não está presente. Os barcos, carros, ônibus e bicicletas aparecem levando as pessoas a circularem e se encontrarem. Os telefones celulares, televisores e computadores também estão presentes. Se há choque entre as gerações, há também o respeito. Os mais novos saem para trabalhar, estudar, mas não abandonam os mais velhos, e a sabedoria popular das anciãs protagonistas do filme (Bastu e Dona Maria) é repassada oralmente para os netos e netas, de forma que a mensagem do filme é muito mais centrada na continuidade do que em rupturas. Em vários aspectos, esses temas se aproximam da construção do sertão urbano do já citado O céu de Suely, que narra a falta de adaptação de uma jovem mãe a sua cidadezinha, Iguatu, no interior do Ceará, depois de ter passado um tempo em São Paulo. Mais do que questões econômicas, o abandono do marido é que a impulsiona a migrar para o lugar mais longe que ela pode alcançar de ônibus, Porto Alegre. Para isso, a protagonista decide se rifar. Tensões econômicas, sociais e desejos individuais entram em choque no filme, assim como elementos tradicionais convivem com elementos modernos (moto-táxis, antenas parabólicas, copiadoras de DVDs).

Podemos destacar, em alguns filmes recentes, dois aspectos que renovam o tema da construção do sertão. Em primeiro lugar, filmes como Deserto feliz (que também aborda o tema da prostituição) e O céu de Suely demonstram uma forte tendência à reflexão sobre a linguagem do cinema, pois tendem a não se apegar a limites narrativos do cinema clássico. O sertão não se reduz a um espaço alegórico ou a um cenário para o desenvolvimento de ações e eventos narrativos. Os diretores renovam as estratégias estéticas permitindo uma experiência perceptiva do sertão como paisagem, prolongando a temporalidade das imagens e privilegiando a contemplação do espaço do sertão. Em segundo lugar, há um investimento em novos gêneros cinematográficos, como no filme de época de Marcelo Gomes, Cinema, aspirinas e urubus, em que, mesmo retratando um sertão dos anos 30, o cineasta opta por destacar a introdução da tecnologia do cinema no enredo do filme.

Nessa mesma linha de renovação da linguagem do cinema, o sertão mineiro de Mutum, mesmo tendo como aspecto central o isolamento espacial e econômico de uma família de agricultores, é retratado através de uma estética que privilegia relações humanas, sentimentos e afetos. Brinquedos de plástico convivem com gaiolas de galhos de árvores no universo infantil do filme. O sertão aparece não só como um cenário, mas como o lugar da expressão de sensações. Mutum segue uma narrativa linear, mas inova em termos estéticos: há um uso bastante econômico de planos abertos. A diretora, Sandra Kogut, opta por construir a narrativa com planos mais fechados. O plano geral mais significativo aparece em uma das últimas cenas do filme, invertendo parâmetros clássicos de representação fílmica, em que o plano geral é usado para contextualizar e situar o enredo.

À guisa de conclusão, pode-se dizer que a renovação de linguagem observada em filmes brasileiros recentes, talvez ainda tímida quando comparada a experimentações de linguagem e gêneros em outras cinematografias contemporâneas, em especial a argentina, tem ampliado as possibilidades de exploração da expressividade imagética do sertão. Ao longo do século passado, o sertão serviu de lugar para a encenação de narrativas pitorescas e experimentais, desde chanchadas e clássicos do estúdio Vera Cruz como O Cangaceiro, de Lima Barreto, 1953, em que o sertão foi construído artificialmente como cenário, até o cinema neo-realista de Nelson Pereira dos Santos e os filmes do Cinema Novo, que transformaram o sertão num espaço simbólico do cinema brasileiro. Esse espaço com características físicas, sociais e econômicas exacerbadas continua sendo um espaço privilegiado. O cinema da retomada buscou no sertão um elemento de consolidação do cinema contemporâneo no Brasil e no mundo. Se, por um lado, o sertão nunca deixou de ser um espaço icônico na cultura brasileira, por outro lado, algumas produções pós-2005 tem reinventado a região através de uma linguagem audiovisual mais amadurecida, buscando temas e estéticas variadas e explorando as diversas possibilidades imagéticas da região.

Para saber mais

No sertão eu vi, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=jC_ZUOcEAWg (acessado em 14/10/2011)

Informações sobre o conceito do sublime podem ser encontradas no livro The Aesthetics of Natural Environments, Carlson, A. and Berleant, A. (eds.), Peterborough: Broadview Press, 2004.

Obras que discutem esses aspectos alegóricos das imagens do sertão em profundidade incluem: Alegorias do subdesenvolvimento, cinema novo, tropicalismo e cinema marginal, de Ismail Xavier, Editora Brasiliense, 1993 e Cinema, trajetória no subdesenvolvimento, de Paulo Emílio Salles Gomes, Editora Paz e Terra, 1996.

Esses argumentos estão no artigo: “Novos ventos sopram do sertão”, escrito por Kátia A. Maciel e publicado na Revista Continente Multicultural em dezembro de 2007.


Katia Augusta Maciel
PhD em cinema pela University of Southampton, UK, e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mariana Arruda Carneiro da Cunha
PhD em cinema pela Birkbeck, University of London. Atualmente, é professora substituta na Universidade de Oxford no Reino Unido.

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