ISSN 2179-1287
Número 16 | mai / jun / jul / ago 2015

A Base Nacional Comum Curricular: o meio e a mensagem no texto preliminar de História

Jean Moreno

Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto. Você, no entanto, está sentado junto à janela e sonha com ela quando a noite chega.

Kafka

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A proposta preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi aberta para consulta pública em 16 de setembro de 2015 sem a disciplina de História. Pra variar, o texto de História já estava envolvido em alguma polêmica ainda antes da publicação. Duas semanas depois, o texto preliminar de História veio à tona e as repercussões e polêmicas foram imediatas e temperadas pelo momento político conturbado por que passa o país, com posições bastante extremadas.

Quem conhece um pouco da história recente das reformas curriculares não se surpreende com o fato. Em 1986, por exemplo, a Secretaria de Educação do estado de São Paulo elaborou uma proposta pedagógica tentando conciliar os novos ideais da abertura democrática e os avanços recentes da historiografia. A proposta nem chegou a ser implantada. A reação intensa na imprensa com termos como ‘barbarização ideológica’, ‘subversão’, ‘ignorância no poder’, ‘ideologização do ensino’, etc. inviabilizaram o debate mais profundo sobre as questões pedagógicas e historiográficas que embasavam o projeto.

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A BNCC é a primeira grande intervenção curricular feita sob o governo do Partido dos Trabalhadores. Desde 2003, as mudanças em relação às políticas curriculares anteriores se deram no sentido da inclusão e da diversidade, com destaque para leis que tornaram obrigatória a abordagem da história africana, afro-brasileira e indígena nas escolas do país. Estas, no entanto, significavam – ou eram lidas apenas como – inclusões que não implicavam diretamente uma afronta à tradição curricular.

Para entender, portanto, as polêmicas que envolvem o texto preliminar de História da BNCC, é preciso observar o diálogo e enfrentamento que ele promove com a tradição escolar. Um formato curricular que adquiriu estabilidade no início dos anos 1990, mas que é legatário de concepções construídas no final do século XIX e início do XX, mesmo com revisões curriculares estaduais ou nacionais, permanece hegemônico. Trata-se de um currículo organizado de maneira cronológica baseado num princípio conhecido como história integrada que se repete nos diversos níveis de ensino.

Nesta organização, do 1º ao 5º ano, estuda-se a história regional e do Brasil de maneira cronológica; do 6º ao 9º ano trabalha-se “toda a história” da humanidade, organizada, mais uma vez, cronologicamente; e, finalmente, no Ensino Médio, estuda-se, novamente, “a história da humanidade, da pré-história aos dias atuais”. A repetição de conteúdos, especialmente a partir da segunda fase do Ensino Fundamental, promove a ênfase numa história da ‘civilização’, de predominância europeia, que ocupa maior espaço no ambiente escolar, em detrimento da História do Brasil e da América.

Basicamente, na concepção eurocêntrica, construída no século XIX, o espírito da civilização teria nascido no Oriente Próximo, ganhado seus fundamentos mais sólidos no mundo greco-romano e, retomado numa Europa das Luzes, chegaria ao ápice espalhando-se pelo mundo. Nesta construção ideológica, sedimentada ainda sob o imperialismo europeu, as histórias da América, África e Ásia, quando aparecem, são afluentes ou consequências de uma macro-história conduzida pela Europa.

A concepção de uma história única, válida para toda a humanidade, e seu corolário, o eurocentrismo, é enfrentada pelos autores da proposta defendendo uma ênfase na História do Brasil como espaço político privilegiado da vivência dos estudantes. Dentro deste recorte intenta-se fazer um alargamento do reconhecimento da presença dos povos indígenas, africanos e afro-brasileiros na história nacional. Já o Ensino Médio, além do destaque anterior, faz uma abordagem por continentes / áreas culturais, com destaque para o estudo da História da América no 2º ano.

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Indo além no embate com a tradição escolar, a discussão provocada pelo texto da BNCC traz uma grande contribuição, ao deixar claro que é preciso abandonar a pretensão ou a ilusão de abarcar “toda a História” na Educação Básica. Isso se reforça ainda mais quando se pensa no tempo escolar. Não se trata apenas do número reduzido de horas semanais, mas diz respeito à concepção de como se produz aprendizagem. Muitos dos argumentos que defendem um currículo extenso baseado em trabalhar “toda a história”, só podem fazer isto concebendo a “aula de História” como aula magna ou leitura seguida de exercício de livro didático. Imagina-se, com isso, alunos como ouvintes passivos.

Se, ao contrário, objetiva-se outro perfil do estudante, com o professor propondo variadas formas de trabalho com debates, leituras de trechos de documentos escritos, imagens, etc. não é mais possível manter tantos conteúdos como possuem, na atualidade, muitos programas escolares. É a partir destas abordagens diferenciadas, demandando um investimento de precioso tempo escolar, que se dá a possibilidade de ressignificação dos conteúdos e de maior envolvimento dos estudantes. Os aspectos cognitivos do comportamento não se produzem à margem dos afetivos, sociais e motivacionais.

Contudo, se a evocação de aspectos da História do Brasil deixou claro um posicionamento político dos elaboradores da Base, a justificativa ainda precisa ser melhor clareada, explicando a seleção de conteúdos através de critérios lógicos ou epistemológicos. Ao optar por processos sociais mais complexos, ao invés de um único grande relato, o texto preliminar da BNCC/História não deu conta de explicar o avançar entre uma série e outra. A pretensão de abarcar “toda a História” é um dos problemas centrais do currículo cronológico tradicional, o outro é a progressão entre as séries.

A organização cronológica tradicional não guarda nenhuma relação plausível com a maturidade cognitiva ou sociocultural dos estudantes. O único critério de anterioridade é a relação cronológica/causal da informação histórica. A priori, não há nada que justifique que um aluno no 6º ano deva estudar História Antiga e no 9º ano, História Contemporânea. A progressão da aprendizagem histórica se dá na direção da ampliação qualitativa do uso dos conceitos históricos, dos procedimentos meta-históricos, das competências cognitivas e sociais. Em busca de níveis mais amplos de abstração e generalização, é preciso propor situações cada vez mais complexas para os alunos, estabelecendo uma espiralidade do conhecimento e possibilitando uma ampliação da sua consciência histórica.

Infelizmente, na tentativa importante de fugir de uma história linear, o texto preliminar de História não conseguiu explicitar uma sequenciação lógica e progressiva da aprendizagem para se opor à tradição linear ou cronológica. Nos objetivos não se evidencia uma preocupação com um ordenamento dos conteúdos, dos conceitos, das habilidades e das competências. Alguns enunciados simplesmente se repetem, aparentemente, a esmo, sem indicação de gradação de dificuldades.

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Muitos dos embaraços no entendimento da proposta preliminar de História vêm, provavelmente, além do tempo curto para produção, da própria necessidade de adequação à concepção geral da BNCC e ao modelo de descrição dos direitos de aprendizagem. O formato de descritores de objetivos/direitos de aprendizagem, estruturado visando a um processo de avaliação do cumprimento das metas, seria mais adequado para uma organização por nível/fase de ensino do que para um currículo seriado. Por isso, talvez, o texto preliminar de História oscila entre objetivos muito amplos – e outros imprecisos – para uma única série.

Desta forma, somam-se à incompreensão de alguns interlocutores sobre os problemas mais profundos que envolvem a aprendizagem da História, as dificuldades de redação e de clareza na proposta preliminar da BNCC, evidenciando problemas advindos do pouco tempo de discussão e da adequação a um esquema previamente pensado pelos coordenadores gerais da BNCC.

Os conteúdos atribuídos aos eixos organizadores (que decorrem do modelo geral da base) – procedimentos de pesquisa; representações do tempo; categorias, noções e conceitos; e dimensões político-cidadãs – não indicam coerência com as finalidades de cada eixo. Da mesma maneira, não se evidencia uma inter-relação clara entre os quatro eixos. Sem relação com a finalidade das rubricas, o texto preliminar da Base, na maioria das vezes, apenas distribuiu conteúdos substantivos precedidos de verbos pouco significativos para expressar os procedimentos de pesquisa, a aprendizagem conceitual, a apreensão do tempo histórico e a construção da cidadania.

Esta situação explicita um problema ainda maior no texto preliminar da BNCC: a sinalização de uma concepção de aprendizagem em História. Muitos dos verbos utilizados repõem um objetivo tradicional: saber informações sobre a História. O texto preliminar da base oscila entre as duas formas de razão pedagógica: uma que faz pensar e outra que transmite o já pensado. É difícil a superação desta situação dentro de um modelo engessado de direitos de aprendizagem. Uma maior variação dos verbos utilizados e uma atenção à relação entre o enunciado e a aprendizagem que, de fato, se almeja podem ser uma possibilidade.

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O debate sobre a Base já teve o mérito de desestabilizar a pretensa universalidade da História única, linear, colaborando na percepção de que os conteúdos históricos são selecionados a partir de critérios lógicos e políticos. Escolhas se impõem pelo tempo escolar e pela certeza de que a ideia de abarcar “toda a história” é irreal e sua permanência é decorrente de uma concepção construída no século XIX e início do século XX, com objetivos que não são mais defensáveis racionalmente no mundo contemporâneo.

Entretanto, temos que considerar que a tradição é vivida pelos agentes como um habitus, uma história incorporada que impregna as mentes de muitos professores da Educação Básica, professores universitários e elaboradores de programas vestibulares. Qualquer mudança proposta quanto a este aspecto é dolorosa, pois atinge a maneira de ver o mundo com que estão habituados e o caráter profissional em que estão inseridos. É difícil que a mensagem central do texto preliminar de História – o rompimento com o eurocentrismo e com a concepção de história única linear – consiga se efetivar através deste meio que é o formato da BNCC, com objetivos de aprendizagem atrelados a um processo de avaliação externa.

Como projeção dos ideais e sonhos de toda uma sociedade, a educação escolar é um campo em disputa. Neste sentido qualquer reforma curricular será vista, no mínimo, como incompleta e lacunar. Não há como esperar um consenso, ainda mais em um país de gigantescas proporções como o Brasil. Mas o texto final da BNCC pode ser uma tentativa, dentre diversas opções, de avançar, para aqueles que acreditam que o conhecimento histórico é fator decisivo para a construção de identidades individuais e coletivas.

A mobilização em torno da BNCC pode ter uma função importante de iluminar, para toda a sociedade e, até mesmo, para os próprios historiadores o papel do conhecimento histórico na formação de crianças e jovens. Papel este que é social, dinâmico e conflitivo, mas que pode também oferecer alguma estabilidade no meio da tempestade do mundo contemporâneo, quando se incorporam as transformações não apenas como contingência, mas como fruto de decisões humanas.

Em jogo na BNCC, como em qualquer reforma curricular de grande porte, está o espelho social que estendemos a nós mesmos. No caso da História como componente curricular, fica ainda mais explícito que o que está em discussão é nada menos do que a concepção sobre quem somos e quem desejamos ser, numa projeção em que passado, presente e futuro estão sempre interligados.

 

Para saber mais

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio. Acesso em 20/01/2016>.

CORDEIRO, J. F. A história no centro de debate: as propostas de renovação do ensino de História nas décadas de 70 e 80. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2000.

MORENO, J. C. História e Ensino Fundamental: formando os fundamentos. Anais do XI Encontro Regional da Associação Nacional de História, 2008.

RÜSEN, J. Aprendizagem histórica: esboço de uma teoria. In: _____.. Curitiba: W. A. Editores, 2011. p. 69-112.

 


Jean Moreno
é professor adjunto do Colegiado de História da Universidade Estadual do Norte do Paraná, doutor em História e Sociedade pela UNESP e bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Paraná.

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