ISSN 2179-1287
Número 16 | mai / jun / jul / ago 2015

A BASE DA BASE: O núcleo central das diretrizes curriculares estaduais para o ensino de Sociologia

Mário Bispo dos Santos

Em setembro de 2015, o Ministério da Educação divulgou a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que deverá abranger 60% do que será ensinado em toda educação básica. Os 40% restantes, a parte diversificada, serão definidos pelas unidades federativas e escolas.   No caso da Sociologia, fora apresentado um conjunto de categorias e eixos para cada uma das séries do ensino médio:  1ª série, “iniciação à perspectiva sociológica – a relação entre o eu e o nós”, 2ª série, “processos de formação de identidades políticas e culturais”; 3ª série, “compreensão das formações políticas, da democracia e da cidade e compreensão sociológica do trabalho”.

Mas, será que “a Sociologia tem base”? Esse é o título de um post da professora Julia Polessa Maçaira (UFRJ) escrito especialmente para o blog “A vida pública da Sociologia” de João Marcelo Maia.  O título nos provoca a enfrentar uma das questões de fundo mais importantes nos debates sobre a construção da Base Nacional Comum da disciplina. No que ela deve se basear, que fontes buscar? Após o retorno da Sociologia aos currículos escolares, será que já teríamos conteúdos nacionalmente aceitos e consolidados?

Na realidade, tais indagações já estiveram presentes em outros momentos que envolveram discussões sobre um possível currículo nacional de Sociologia, como por exemplo, em 2006, na organização da Orientações Curriculares para o Ensino Médio.  Os seus autores optaram por não apresentar uma proposta de conteúdos por razões pedagógicas e estratégicas: avaliaram que ela poderia ser vista como um programa oficial inibindo a criatividade e a diversidade de experiências fundamentais no processo de consolidação da disciplina. E por razões práticas: caso optassem por uma proposição programática, no que iriam se basear? Julgavam que não haveria conteúdos universalmente aceitos e consagrados, dentre outros fatores, por causa da longa ausência, da instabilidade, enfim, de uma longa história de idas e vindas da Sociologia como disciplina escolar.

No entanto, para alguns pesquisadores, dez anos depois, estaríamos vivenciando uma conjuntura diversa daquela na qual as orientações foram elaboradas. Políticas e processos diversos teriam contribuído para a estabilização dos conteúdos de Sociologia nacionalmente: encontros estaduais, regionais e nacionais, como os ENESEB (Encontro Nacional sobre Ensino de Sociologia na Educação Básica), programas de formação de professores, como o Pibid (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), mudanças no ENEM, a inserção da Sociologia PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e a própria aprovação da obrigatoriedade em 2008.

Em 2012, nós fizemos uma pesquisa que, de alguma forma, buscava justamente verificar uma hipótese semelhante àquela da estabilização. Buscávamos averiguar se existiria um mapa ou campo comum a partir do qual as diretrizes curriculares estaduais teriam sido elaboradas e que poderia subsidiar um futuro debate acerca de uma proposta curricular nacional.

No estudo, foram investigadas as diretrizes curriculares, disponíveis na época, na internet, de quatorze unidades da federação: Acre, Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo.  A análise apontou a existência de 10 categorias presentes em 12 das 14 diretrizes estaduais, ou seja, em 85%.   Outras 12 foram identificadas em 9 das diretrizes (65%) e 7 em pelo menos 7 diretrizes (50%).

No presente artigo, vamos designar o primeiro grupo de categorias como núcleo central/base numa apropriação/adaptação da terminologia proposta por Jean-Claude Abric, um estudioso da Teoria Representações Sociais.  E ainda, denominar o segundo grupo como sistema periférico próximo e o terceiro como sistema periférico distante.

De acordo com Abric, uma dada representação social é organizada por um sistema duplo. Um núcleo central que tem um caráter estrutural, histórico e sociológico. Nas palavras do autor, “ele constitui a base comum, coletivamente compartilhada das representações sociais. Sua função é consensual. É por ele que se realiza e se define a homogeneidade de um grupo social”.

Haveria ainda um sistema periférico que teria uma natureza mais conjuntural e flexível constituído de elementos às vezes transitórios e influenciáveis por diversas variáveis.  No nosso caso, poderiam pesar por exemplo, a história, o modo peculiar de inserção da Sociologia em cada rede estadual e o projeto político-pedagógico da secretaria de educação.

A Figura 1 apresenta uma síntese gráfica do posicionamento das categorias nos dois sistemas.  Elas estão dispostas em camadas ou órbitas, distintas por diferentes tons de cor. No centro, marcado por uma cor mais escura, estão aquelas pertencentes ao núcleo base. Orbitando aquele núcleo, em tons mais claros, a segunda camada, com as categorias da periferia próxima e a terceira camada, com aquelas da periferia distante.  É importante assinalar que as categorias estreladas (sinalizadas por um asterisco) são aquelas presentes tanto nas Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE) como na versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular.

O leitor poderá observar, no centro da figura, as categorias sociedade, cultura, identidade, poder, Estado, classes sociais, movimentos sociais, direitos, gênero e trabalho. Elas constituem o núcleo central, resistente às mudanças, a base das diretrizes curriculares.  Nota-se que todas categorias são estreladas (*) indicando uma plena concordância entre o núcleo base das DCE e a proposta para a BNCC/Sociologia.

Orbitando o núcleo central, encontramos 12 categorias pertencentes à periferia próxima e 7 localizadas na periferia mais distante.  Dentre elas, apenas 4 não são estreladas (sublinhadas em amarelo) apontando novamente um alto grau de concordância entre DCE e BNCC. .

Figura 1 Diretrizes curriculares estaduais –  categorias centrais e periféricas

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Fonte: Elaboração própria.

Em síntese, há, representada graficamente na Figura 1, uma consonância entre a proposta preliminar da base nacional para a Sociologia e núcleo base das propostas curriculares estaduais. Ressaltamos mais uma vez as pesquisas que demonstraram que o referido núcleo também estrutura o conteúdo que é cobrado no Edital do Plano Nacional do Livro Didático/Sociologia e no ENEM/vestibulares. Dessa forma, configura-se um núcleo ainda mais duro e estável, pois amarra o que é proposto (BNCC, DCE), o que é largamente utilizado como recurso didático e o que é avaliado.

Por isso, de volta à pergunta inicial, responderíamos sim:  a proposta de uma Base Nacional para Sociologia tem base! Uma base derivada de vários processos nacionais e refletida nas diretrizes estaduais. No entanto, como se trata de uma proposta em construção, é importante trazer para o debate algumas questões, dentre elas, duas postas pela professora Júlia Polessa que inclusive podem ser visualizadas a partir da Figura 1.

A primeira diz respeito à opção por não se apresentar autores/pensadores clássicos ou contemporâneos. Se o leitor observar a Figura 1, agora com foco no sistema periférico, poderá identificar um total de 19 categorias, dentre as quais apenas 4 não são citadas na proposta da BNCC. Talvez, essa pequena discordância de ordem numérica não seja irrelevante, pois, envolve a ausência dos três pensadores considerados fundadores da Sociologia, Durkheim, Marx e Weber.  Embora perifericamente, eles aparecem nas diretrizes estaduais apontando a importância de se debater na construção da base o lugar de um referencial teórico. A professora Julia ainda aponta a ausência de referências à produção intelectual brasileira fundamental na hora do professor buscar a contextualização e a aproximação com realidade do estudante preconizadas pela BNCC.

Continuando a observação da figura 1, o leitor poderá identificar algumas categorias estreladas perdidas, deslocadas para além da periferia mais distante.   Ação, conflito, estigma, interação, partidos políticos e outras 10 categorias fazem parte da BNCC, porém não ocupam posições centrais, nem periféricas em relação às DCE.  Desse modo, a proposta de uma base comum nacional para a Sociologia incorpora as categorias nucleares e periféricas referentes às diretrizes estaduais (25 em 29 categorias elencadas) e ainda apresenta mais 15 categorias.

Em suma, a base é constituída de pelo menos 40 categorias.  Nas contas da professora Julia Polessa, isto implicaria em se abordar mais de treze categorias por ano escolar e mais de três por bimestre. A pesquisadora sugere que a base contemple um leque menor de categorias possibilitando que elas sejam compreendidas por meio de mais de uma abordagem temática e teórica.

Nessa linha, a base da proposta curricular nacional poderia ter como horizonte os limites do núcleo central acima descrito e sua periferia próxima incorporando algumas categorias, talvez aquelas relacionadas aos referenciais teóricos.  As demais seriam indicadas como categorias com potencial para integrar a parte curricular diversificada a ser construída por cada unidade federativa, cada escola.  Eis talvez um arranjo que se aproxime da divisão 60% BNCC e 40% parte diversificada.

Recentemente, fevereiro de 2016, foram divulgadas as primeiras leituras críticas sistematizadas da proposta da BNCC. De modo geral, elas sugerem, dentre muitos pontos, justamente: um foco no essencial, devido à grande extensão do documento, além de  maior unidade e coerência, a fim de clarear o grau de complexidade a ser alcançado  em cada série e o sequenciamento dos conteúdos.

Apesar de tais pontos a aprimorar, cabe salientar que as bases da proposta para a Sociologia já estão colocadas: o núcleo base das diretrizes curriculares estaduais. Diretrizes com as quais é crucial estar sempre dialogando durante a jornada que se inicia de construção da BNCC.

Nesse sentido, terminaríamos propondo um breve resgate da experiência do Distrito Federal.  Ainda no final dos anos noventa, foi uma das primeiras unidades da federação a tornar obrigatória a Sociologia em todo o ensino médio e com duas horas-aula semanais. Mesmo com essas condições, optou-se por uma proposta minimalista organizada em três eixos relativos às Ciências Sociais e em dez categorias sendo que cada uma delas deveria ser abordada nas três séries, porém com níveis de complexidade e enfoques distintos: na primeira série, sob uma ênfase antropológica, na segunda, sociológica e na terceira, política.

Naquela época, a proposta tornou-se uma das referências nas lutas em outros estados pela Sociologia, inclusive sendo publicada no livro “Sociologia e ensino em debate”, em 2004, pelo sociólogo e professor Lejeune Carvalho.  Localmente, ela ajudou a gerar a estabilização dos conteúdos, um fator fundamental para a própria consolidação da disciplina no início dos anos 2000, um período crítico, pois não havia o amparo da obrigatoriedade nacional.

Em 2006, a Universidade de Brasília (UnB) iniciou a cobrança sistemática de conteúdos de Sociologia em seu programa de avaliação seriada e no vestibular. Como consequência, a maioria das escolas particulares inseriu também a disciplina em seus currículos. Os objetos de avaliação de Sociologia da UnB tinham como base a proposta curricular da rede pública. Dessa forma, houve um alinhamento entre o ensinado nas escolas e o cobrado nos processos seletivos de ingresso na principal universidade da cidade.  Enfim, construiu-se uma das bases de estabilidade e perenidade do ensino de Sociologia localmente (15 anos de plena presença) prenunciando um movimento que se desenvolveria nacionalmente.

 

Para saber mais

Base Nacional Comum/Sociologia:

BRASIL.  MEC. Base nacional comum curricular. Brasília.

Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br>.

MAÇAIRA, Julia. A Sociologia tem base? Disponível em:

<https://avidapublicadasociologia.wordpress.com>.

Currículo de Sociologia na educação básica:

BRASIL. MEC. Orientações Curriculares do Ensino Médio – Sociologia. MORAES, Amaury; GUIMARÃES, Elisabeth da Fonseca; TOMAZI, Nelson D. Brasília, DF, 2006.

CARVALHO, Lejeune(org.). Sociologia e Ensino em debate. Rio Unijuí, 2004, Anexo VII – Currículo das escolas de ensino médio na área de humanas do Distrito Federal.

CARIDÁ, Carolina. O currículo de sociologia no ensino médio: contribuições para a análise das propostas de conteúdo programático nos estados brasileiros. In: SOUZA (org). Sociologia: conhecimento e ensino. Florianópolis: Em Debate,  2012. p. 17-60.

MATIOLLI, Tiago; FRAGA, Alexandre.  Os conteúdos de Sociologia nos vestibulares e no ENEM: uma discussão sobre conhecimento prévio. Revista: Saberes em perspectiva. Jequié, v.4, n.8, p. 195-215. 2014 (Dossiê: Ensino de Sociologia no Brasil).

MEUCCI, Simone; BEZERRA, Rafael. Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção do currículo. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1,  p. 11-13, 2014.

OLIVEIRA, Amurabi.  Currículo de Sociologia na escola: um campo em Construção (e disputa). Espaço do currículo, v.6, n.2, p.355-366, 2013.

PEREIRA, Tiago. Disputas curriculares: o que ensinar de sociologia no ensino médio. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 51, N. 3, p. 261-267,  2015.

SARANDY, Flávio. Propostas Curriculares em Sociologia. Revista Inter-Legere. n. 09, pp. 61-84. 2011.

SANTOS, Mário.  Diretrizes curriculares estaduais para o ensino de Sociologia: em busca do mapa comum. Revista Percursos, 13(1):40-59, 2012.

SÁ, Celso. Núcleo Central das Representações Sociais. Petrópolis, Vozes, 1994.

 


Mário Bispo dos Santos
é professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, na linha de pesquisa de Educação, Ciência e Tecnologia.

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